domingo, 3 de junho de 2007

Borras do Êxtase

Isto É Café! de Harold E. Edgerton

Embora não tenha por hábito sucumbir a excessos, também não costumo ceder ao vício oposto, o da parcimónia, no tocante às pequenas alegrias que nos encorajam a continuar à tona da Vida, que não à toa nela. Uma excepção há, para mal dos meus outros pecados: o café. Tudo porque sou excessivamente sensível ao efeito que ele me provoca, no sentido de me manter desperto, mesmo contra vontade. E se um sono concentrado passa por ser prerrogativa dos Justos, a Divina Virtude da Caridade, quando não a da Misericórdia, parece-me aconselhar a que se não negue uma passagem pelas brasas a um pobre réprobo...
O certo é que só posso tomar um por dia, o do almoço, evidentemente. A menos que vá para os copos em boa companhia, caso em que ainda me permito um à janta. Qualquer acréscimo tem como consequência as voltas na cama que me impedem de esquecer o que sou, quer dizer uma das mil e uma formas possíveis da Infelicidade.
Por isso entendo a concepção que se gerou no Século XVI, em que, muito por obra de a introdução do magnífico líquido ter transitado pela ameaçadora e infiel Turquia, os mais vigilantes activistas da Cristandade encararam esse excitante néctar como a alternativa que Satanás procurava propiciar à fraqueza humana para desviar a Espécie do consumo do vinho, susceptível, pela Consagração, de se tornar no Sangue de Nosso Senhor. E por isso entra na minha galeria de Figuras Exemplares o Papa Clemente VIII, o qual, em 1594, decidiu a questão: após provar a negra maravilha, baptizou-a e terá dito que algo tão agradável não poderia ser propriedade exclusiva do Demónio, sendo que, como o poder da Igreja de Cristo é superior ao do Maligno, ficaria, de aí em diante a bebida a ser também património dos Cristãos.
Esta expropriação do Adversário é exemplar a todos os títulos: Não se abdica da Experiência, a qual tenho por imprescindível, ainda que sob a forma de observação, modalidade de empirismo que assenta nas perdas, danos e riscos a suportar por outrem. Mas não se cai na pecha do experimentalismo em que se faça a comunidade perigar, como acontece com tantas tentativas de implantação política, oferecendo-se o Vigário de Deus para a perigosa prova. Feita esta, houve o cuidado de não fundamentar estritamente no vivido a decisão, mas, sabiamente, de articulá-la com a fundamentação absoluta da distinção entre Bem e Mal, como na Superioridade do Lado da Divindade. Eis como o gosto se oferece para cingir as vestes de tratado de Teologia.
Entretanto, também economicamente, há um dever de nos cafeizarmos um pouco: trata-se da segunda substância mais transaccionada mundialmente, depois do petróleo; e não se presta a chantagens de nenhum cartel de produtores, ao contrário da ameaça perene da OPEP. Além de ser peça essencial no diálogo Norte-Sul. O melhor que me passou pela boca comprei-o numa loja especializada e era, em porções pensadas pela casa, uma mistura de produções de Timor, de África e do Brasil.
O Venerando Pontífice tinha razão!

4 comentários:

Gazeta da Restauração disse...

também sou viciado

O Réprobo disse...

Meu Caro Gazeteiro,
há o vício que provém do gosto e o que decorre da utilidade. Ora veja só a curiosa celebração que Ranjit Nair, sob a forma de limerick nos dá, na net:

Ode to Coffee

O! Coffee where art thou
When I need thee now?
In thy many flavoured blends
a hot cup would be godsend.

I cannot keep awake
Without a short coffee-break
With thy life-giving aroma
Save me from going into a coma.

Java, Colombian or French Roast
Thy every flavour, I will toast.
To the end thy loyal slave
Three cups a day I will always crave.

Gazeta da Restauração disse...

para mim alia-se a utilidade ao prazer!

forte abraço

O Réprobo disse...

Dois num! temos de combinar um bate-papo em redor de duas chávenas.
Outro!