sábado, 19 de janeiro de 2008

As Perdas de Si

Dia do aniversário de Edgar A. Poe. Voltei ao seu «William Wilson», uma recuperação do tema do Duplo, sempre tão obcecante em quem gosta de pensar a alma humana de uma perspectiva em que o múltiplo não se cinja às relações sociais. O decalque homónimo do protagonista, eterna inquietação para ele, de idêntico trajar, falar e memórias, com o correr dos anos transforma-se na aparição que sussurra o nome de ambos, de cada vez que o narrador se apresta para cometer uma vileza, frustrando-a e humilhando o falhado pecador, até ao momento final em que a tentativa de assassínio libertadora se transforma no suicídio que frustra a emancipação.
O que me fez pensar na crítica geralmente dirigida a L. Malle pela adaptação que fez, pouco fiel, dizem-na, como sadizante a querem. Parece-me que não. A cena mais forte que criou, a do jogo de cartas e sequente flagelação de Bardot por Dellon, vejo-a como a elevação da parada do espírito do conto - BB, sofrendo e gozando, consegue não gritar. E nessa luta das duas, a que sente e a que cala, rouba a única vitória que quem narrava, por essa mesma qualidade, tinha sobre a sombra perseguidora - ser o centro da atenção que não o largaria.

10 comentários:

-JÚLIA MOURA LOPES- disse...

o Alan Delon no seu melhor.

E eu a pensar que iria passar sensualmente a pena nas costas dela, como fez com a Romy no filme a piscina...fiquei maldisposta..
bjinho

O Réprobo disse...

Querida Júlia,
não, aqui o contexto é muito diferente. Mas a cena, bem fortezinha, embora podendo alimentar os apetites das fantasias ásperas, tem uma função mais importante, que é a subalternização do culpado, que, sem ela, se glorificava mesmo quando dava conta da repressão a que a própria consciência o sujeitava. Repare, articulando filme e texto, ficamos a par de que no jogo que aqui determina a consequência W.W., o personagem, fazia batota. A que ela, afogando a reacção e prendendo-nos, rouba duplamente o ganho.
Beijinho

-JÚLIA MOURA LOPES- disse...

sim,Paulo! Ela ganhou,sem dúvida. Quase Surrealismo, diria, mas possivel.

beijinho

O Réprobo disse...

Querida Júlia,
sem dúvida que a imanência da cena transcende o espartilho lógico de que não podemos prescindir ao analisá-la. E, assim, "Surrealismo" define na perfeição.
Beijinho

-JÚLIA MOURA LOPES- disse...

.....impressionou-me muito (especialmente porqe cai no filme como um OVNI)
e queria rever o post mas vou poupar-me,por enquanto. Não imaginava Barbot num papel tão invejável.
Admiro a mensagem transmitida: a força psiquica é bem mais demolidora do que a fisica. Redenção utópica também...

oh, vida...


beijo

O Réprobo disse...

Querida Júlia,
como também, à primeira vista, na história de E.A.P. que lhe serve de base, onde não se encontra tal descrição. É preciso fazermo-nos radares para percepcionar a conexão profunda. Mas creio que a sugestão postada não será descabida.

BB foi para o caso transformada, fisicamente.: cabelos escurecidos, factura arredondada do rosto acentuada, olhos modificados para passar por italiana, mas também para nos fazer por segundos esquecer a estrela imperial e indomada que a personagem não comportaria.
Beijinho

Capitão-Mor disse...

Curiosamente, Poe foi a minha introdução no mundo do fantástico. Depois dele, tudo me sabe a pouco...

O Réprobo disse...

Eu gosto muito, Caro Capitão-Mor. Toda a preocupação dele em criar efeito no Leitor era centrada na arte do encadeamento narrativo, não recorrendo a maneirismos estilísticos.
Abraço

-JÚLIA MOURA LOPES- disse...

Enviei um comentário de tarde e pelos vistos não ficou gravado.não é a 1ª vez ue me acontece,as pressas dão nisto.

Dizia eu, Querido Paulo que a conexão tem todo o sentido,sim! Não é de todo descabida, muito pelo contrário.

Vivemos agredindo e respondendo aos nossos próprios fantasmas, tal qual Wilson se viu num espelho, na Casa Grande, aquando da agressão do(s) Outro(s), que são as duas personagens do conto,(segundo me lembro)

beijo grande,Paulo

ps- BB beneficiou com a transformação, transcendendo-se,acho, atingindo o objectivo do que se chama em linguagem cénica, Caracterização do Personagem.

O Réprobo disse...

Sim, Querida Júlia, numa altura em que já não tinha a carinha de bineca do início, a caracterização deu-lhe um peso que a imagem habitual não permitiria.

No resto, esá Cheinha de razão. E esse reflexo de defesa pode ser-mos também fatal.
Outro, do mesmo quilate