quinta-feira, 7 de junho de 2007

O Adro e o Andor

Corpus Christi de Amadeu Sousa Cardoso, "melhor" que Guernica

(...) a de «Corpus Christi», «Corpo de Deus», ou de «S. Jorge», que no reinado de D. João V atingiu uma imponência e originalidade notáveis não só na ostentação litúrgica como nas excentricidades profanas. Com um mês de antecedência iniciavam-se os preparativos nas ruas por onde devia passar a procissão, (e eram quase todas as da baixa) e oito dias antes o «estado» de S. Jorge composto de pretos de calça branca e vestes vermelhas agaloadas a amarelo de chapéu armado das mesmas cores, tocando tambores e pífaros, percorriam as ruas anunciando a festividade. Cada componente desta guarda usufruía uma pensão anual no montante de cinco réis diários. Na manhã do dia de «Corpo de Deus» a tropa apresentava-se de calça branca e, depois de lhe ser passada revista no Passeio Público, ia desdobrar-se em alas por todas as ruas do percurso, ruas prèviamente areadas e juncadas de verdura e flores. No cortejo encorporava-se a Família Real, clero e nobreza, o Cardeal-Patriarca sob o pálio, o Cabido da Sé e respectivas basílicas, todas as irmandades e párocos de Lisboa e S. Jorge a cavalo e o seu «estado» seguido de povo numeroso e reverente.
De Julieta Ferrão in «Procissões e Cultos de Lisboa», Olisipo Ano XV Nº58 Abril 1952
Que diferença, entre a devoção e proeminência de Outrora e o canto noticioso dos nossos dias! Data tão importante celebrada em tempos com desfile tão notório e concorrido e remetida hoje para referências apressadas à justificação do feriado! Mas não admira esssa diferença de reacções de uma Lisboa que dantes se unia com toda a transversalidade do Mundo na tentativa de salvação das almas e hoje se desarticula em esquartejamentos partidários e outros a eles reactivos, no sentido de tentar safar o seu empobrecido corpo, bem desbaratado, de resto, num acto que ainda no adro vai. Sintoma de decadência, decerto. Questão de regime e dos vícios que o conforto acarreta. Próprios de quem acredita que um pedaço de papel lhe trata da vida e desdenha a participação em festejos tradicionais religiosos como capaz de lhe melhorar maleitas mais duradouras e altas.

2 comentários:

JSM disse...

Caríssimo Réprobo
Como sempre um excelente e oportuno postal com comentário apropriado! Devia ser visto e lido por todos. A representação de Sousa Cardoso é imponente deveras, e como diz, salvaguardando comparações, melhor que Guernica. É estranho que tão bonito quadro não tenha maior divulgação.
Parabéns e obrigado por este momento.
Abraço.

Post-scriptum. O que fiz lá no meu estaminé limitou-se ao registo histórico da data, o que tem sempre utilidade neste tempo de trevas.

O Réprobo disse...

"limitou-se", Caríssimo JSM? É o que mais importa, como bem diz, em tempos onde as festividades Cristãs e mobilizadoras do Todo são substituídas pelos concursos televisivos que pouco mais fazem do que embrutecer.
Mas a descrição do que foi, mesmo num período de abastardante centralização, faz-nos reviver uma edificação social que nos é cara, não?
Grande abraço