sábado, 5 de julho de 2008

Contornos do Incontornável

De cada vez que passa mais um ano sobre a entrada nesta passagem de Jean Cocteau ponho-me a pensar nos juros muito moderados que rendeu o enorme capital do seu talento. A Poesia não é muito boa, ao contrário dos filmes, que são excelentes. Mas mesmo essa qualidade é diminuída pela constante vontade de completar-se e auto-explicar-se, quando não directamente interruptiva do curso esperado das obras, ao menos por uma direcção de actores teatralizante ao ponto de neutralizar o envolvimento íntimo do espectador, mesmo em argumentos que tinham potencial contrário, como «A Bela e o Monstro» de que já Vos falei.
Há uma frase que ele soltou incidentalmente, a qual penso dar bem conta da limitação que sempre se pôs este Homem dos Sete Ofícios que, ao contrário de Leonardo, ficou a meio caminho em todos. Disse que pretendia sempre reafirmar o direito à inocência do incesto íntimo que constituem a obra e o homem misturados. Com efeito, enquanto a generalidade dos grandes Artistas gera uma obra como uma filha, para que outros a possuam, o notável Jean nunca conviveu bem com o dia em que a sua resolvesse sair de casa. E dessa sofreguidão brota o incomodativo sentimento de que alguma orientação a mais impede o receptor de se fundir com o que lhe é proposto, num momento paroxístico.
Curiosamente, este também grande achador de ditos espirituosos está nos antípodas de Wilde, pela razão inversa, a de não ter feito da biografia a coerência constante que transformou o outro num personagem seu. Tendo todos os amigos certos, ficou-se sempre pelo modesto papel de dotadíssimo entertainer.
Penso que só uma das suas obras escapará ao fado da inacessibilidade da permanência impoluta do trágico, precisamente aquela que, por apenas assentar numa figura, feminina, para mais, lhe não permitia adicionar-se nem subtrair naturalidade a diálogos: «A Voz Humana». Da aptidão a ser encenada e representada segundo uma multiplicidade de concepções nasceu o cantinho clássico que lhe estava reservado.
Melhor autobiografia do que as muitas páginas que escreveu e as entrevistas concedidas, foi o punho do espadim académico que desenhou, aproveitando mais um pretexto de criatividade fornecido aos portadores da casaca das ramagens verdes:

10 comentários:

ana v. disse...

Em ditos espirituosos e aforismos "na mouche" ele era óptimo, Paulo.
Bj

Anónimo disse...

Caro Réprobo, às vezes, quando passo por aqui, tenho a impressão de ser um completo bárbaro, alheio a qualquer cultura. Ano passado vi, do homenageado, La Voix Humaine, e não fosse esse feliz acaso seria-me impossível entender o post. Dessa pequena ópera tive boa impressão, pareceu-me um fiel retrato daquele desespero que produz efeitos maiores que as causas; que, quando iniciado, alimenta-se a si mesmo e se desenvolve até a perdição. Como já estive em situação semelhante, pude ser tocado pela obra.

Abraços.

O Réprobo disse...

Então não era, Ana?
Os meus preferidos:
"Claro que acredito na Sorte. De que outra maneira poderia justificar o sucesso das pessoas de que não gosto?",
"Não vos aconselho a imitar os meus sonhos"
e, inquirido sobre o que tentaria salvar se um incêndio rebentasse na sua biblioteca,
"o Fogo".

Aliás, era pessoa de grande previsão e dá para enxovalho adicional a Meninas Que Se querem mandar ao ar:
MISS AÉROGYNE, FEMME VOLANTE
(Foire du Trône)

Pigeon vole! Aérogyne.
Elle ment avec son corps
Mieux que l´esprit n´imagine
Les mensonges du décor.

Aérogyne, pigeon vole!
Rêve, allège le dormeur lourd;
Eloa, dompteuse d´Eole,
Dans un océan de velours.

Voadora, domadora do Vento, veludo (da imagem identificativa), ai as coincidências!

O Réprobo disse...

Caro Anínimo,
sem dúvida, é criação muito forte, até porque o conteúdo é a desesperada tentativa de criar a realidade a partir da ilusão que as desilusões deram à luz. Na absoluta solidão contestada no excesso absoluto do irrealismo que excita a compaixão e o temor não houve espaço para o Autor incluir os intelúdios orientadores ou o falsete acentuante de outras obras, transformando esta num clássico, a que, por excelência, dispensa a encenação de couteau, pois o que interessa é o texto de Cocteau.
Abraço

Cristina Ribeiro disse...

Fico muito mal no retrato, se disser que não conheço nada de Jean Cocteau? Será caso de ter de me pôr a caminho para remediar a falta?
Beijo

O Réprobo disse...

Ai, Cristina, acho que sim.
Pode começar pelos filmes «Orfeu» e «A Bela e o Monstro». E, nos livros, para «Tomás o Impostor». Depois, é aprofundar. «A Voz...» tem de ser vista, não basta lida.
Beijo

ana v. disse...

Devo dizer-lhe, querido Paulo, que o seu tiro enxovalhante saíu pela culatra: chegou em forma de elogio! MISS AÉROGYNE, FEMME VOLANTE (mesmo com mensonges incluídas, que ninguém é perfeito...) é um título que adopto desde já. Com muito prazer!
E continua descrente das minhas proezas aéreas? Pois não perde pela demora... não foi o Cocteau que disse também: "Não sabendo que era impossível, foi lá e fez."? Então...
Vou copiar e guardar o poema que me dedicou no "enxovalho", fique sabendo!
Beijinho

O Réprobo disse...

Querida Ana,
words, words, words. Só Lhe vejo altos voos com os pés bem assentes na terra. E até isso mudar vou xingando o lastro que A furta ao «Porta...». Buuuu! Preguiçosa!
Beijinho
PS- nunca pensei que agraasse tanto uma acusação de exibicionista de feira! Tenho de arranjar outra coisa. Ai, este Cocteau imprestável!

ana v. disse...

LOL. Páre de xingar, Paulo. I´m back in town!

O Réprobo disse...

Xinganço em aposentação antecipada, Querida Ana.
Demos Graças ao Senhor Nosso Deus!
Beijinho