quarta-feira, 15 de agosto de 2007

As Inspirações na Misturadora

Eu gosto de Balzac. Reputo mesmo um dos seus livros, «As Ilusões Perdidas» como dos melhores romances de sempre, embora já não tanto os «Esplendores e Misérias das Cortesãs», seu seguimento. A figura de Lucien, talhada com o duplo poder, raramente combinado, da observação e da criatividade, deveria ser vacina obrigatória inoculada em todos os rapazes que, na adolescência, esperam mais de e para si do que do conhecimento dos Outros e respectivo investimento neles. A explanação da fraqueza de carácter atolada na imprecisão megalómana das aspirações, dada a leitor sensível, cura muito anseio e prepara para dar à vida e dela agradecer as ofertas.
Mas eis que leio em Cruz Malpique que Balzac não dispensava duas coisas sobre a mesa de trabalho: a cafeteira com o seu cafèzinho quente, onde bebeu boa parte da sua lucidez mental, e o seu gato. Gostava de sentir, combinados, os dois perfumes: o do café e o desprendido pelo seu felino, um perfume almiscarado que lhe fazia dilatar a narina.

São, sabe-o Quem me costuma ler, duas das minhas pequenas mas constantes paixões. O que não me obrigaria a prezá-las em conjunto, pois também muito gosto de quase toda a fruta e desenvolvo alguma má vontade contra a salada das mesmas composta...
Mas, exercício ocioso, porém devoto, ponho-me a especular sobre a correspondência inspiradora desses dois afectos no grande Honoré. À primeira vista diria que o café, mantendo-o desperto, seria a alavanca que permitia activar o afamado realismo, enquanto que o bichano configuraria, pela volúpia subtil e bela dos seus movimentos, como pelo harmonioso ronronar do seu sono, a fantasia e excitação de sensibilidade imprescindíveis à obra prima.
Todavia, surgem-me segundos pensamentos quando leio as variações introduzidas pelo Autor, o que escreveu sobre a negra e aromática beberragem: Eu descobri um método terrível, ou antes, brutal, que recomendo apenas a homens de vigor excessivo(...) usar café finamente pulverizado, café denso, frio e seco, directamente no estômago vazio. (...)A partir desse momento tudo fica agitado. As ideias rapidamente tomam posição como os batalhões do Grande Exército para o seu legendário campo de batalha e a luta desencadeia-se. As memórias carregam, com os seus estandartes brilhantes ao alto. A cavalaria da metáfora desdobra-se num galope magnífico. A artilharia da lógica arremete, com um estrépito de atrelados e munições. Obedecendo às ordens da imaginação os atiradores de elite apontam e disparam. Contornos, formas e caracteres ganham corpo. O papel enche-se de tinta, pois o labor nocturno começa e acaba com torrentes desta negra água, como a batalha começa e se conclui com pólvora negra.
Vendo-me assim desmentido no papel que ao delicioso excitante conferia fico-me interrogando se à contemplação do sono da mascote não caberá porventura o desempenho de indução da serenidade no Artista, a tal sine qua non...
A imagem é O Gato de Balzac, de Jeffrey Wade Brown.


2 comentários:

Anónimo disse...

S. É engraçado o café frio ser tomado e o quente só aspirado.

O Réprobo disse...

Sim, não é uma sinestesia, mas soa estranho. Como o facto de a cânfora, ingerida ou inalada, ter efeitos completamente opostos sobre o mecanismo de excitação sexual masculino, conforme provam as práticas ancestrais do Exército Português e dos sátrapas orientais, respectivamente.
Abraço