sábado, 27 de outubro de 2007

Como Me Rendi a Breda

Gosto de jogos de espírito, de fazer a vontade a Damas que admiro e de palrar. Não podia, em conformidade, deixar de comprar o desafio da Terpsichore, de falar sobre um quadro que me tenha dito muito. É inútil esconder o título, porque Aquele que considero o melhor de sempre tem identidade divulgadíssima até junto de pessoas pouco interessadas nas Belas Artes. Demais, diria, pois A Rendição de Breda, de Velázquez, passou com um segundo nome, Las Lanzas. E aqui penso estar uma chave, até porque é uma outra o elemento central, para leitura menos imediata do que a sugerida pelos catálogos. E qual é ela? Não penso que o papel dos dardos em absoluta verticalidade seja apenas o de dar a dimensão do contingente bélico, embora também para isso sirva. Pintor do Rei que era, o Artista quer com uma arma nessa altura já mais cerimonial do que eficaz, dar-nos a grandeza protocolar do Exército da Coroa de Espanha, face a alguma irregularidade dos defensores holandeses, preferencialmente associados à ferocidade combatente dos arcabuzes. Assim se acentuaria o Cavalheirismo de Spínola perante a capitulação de Nassau, de que parece ter tido um proveito igual à fama, o que corresponde ao verso de Calderon inspirador da confecção do quadro: o valor do vencido aumenta a fama do vencedor. A postura de ambos, inclinando-se um, confortando com o braço o homólogo, enformando um traço de união, quebraria a rigidez inicialmente esperada na circunstância. Lanças assim subvertidas dariam a medida da ironia que pudesse corroborar a percepção que Dali tinha do pintor seiscentista, como dos mais inteligentes do ofício.
Mas o que mais me afasta da interpretação dominante é o papel atribuível aos olhares das segundas figuras "para fora da pintura". Onde todos vêem apenas um meio de trazer a si o contemplador dela, eu suspeito, além disso, uma inquietação que só pode ser dirigida ao imortalizador da cena, presumivelmente por captar o instante de entendimento dos chefes, num ambiente de animosidade político-religiosa, com destroços ainda fumegantes em fundo. Assim se explicaria a diferença de expressão do auto-retrato incluído, encostado à borda direita, muito menos severo que a dos outros: com efeito, o retratado conheceria bem demais o retratista...
Não tenho memória especial da comparência, salvo que na primeira vez que conscientemente estive frente a ele tinha enchido o quarto do hotel madrileno em que fiquei de volumes adquiridos na Casa Del Libro. E a surpresa das dimensões, para que me não achava sificientemente avisado. De resto, foi a confirmação da existência real de uma obra muito olhada e algo pensada. Nada como o que aconteceu na Basílica da Santíssima Anunziata, em Florença, onde tinha ido contemplar os frescos de Andrea Del Sarto e tive o encontro até hoje mais imediato com o Sagrado, que me tomou os sentidos e falou, transportando-me, às emoções.
Bom, se isto é uma corrente, gostaria de ouvir o Je Maintiendrai falar sobre um quadro que haja desempenhado um papel capital na respectiva fruição. Estando para isso, evidentemente.

26 comentários:

Anónimo disse...
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Anónimo disse...

Bela leitura duma das grandes pinturas daquele que foi,também para mim,um dos maiores pintores do País vizinho,e que me remeteu já para uma revisão dessa época, em que os portugueses integravam ainda o exército de Espanha.
Beijo

Anónimo disse...
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Anónimo disse...

Bons antecedentes, Don Filomeno :)

O Réprobo disse...

Muito me contas, Caríssimo Filomeno. E o pai da Nastassja estava em dia de se poder falar com ele? Tomando nota do livro, há que dizer que guardo boas memórias do meu período militar, para al´m do aliciante estatuto "na situação de disponibilidade"...
Rey era, de facto, muito bom e, para além do tipo preferencial que encarnou, até o bouc que usava se adequaria a personificar o cavalheirismo dos Seiscentistas.
Abraço

O Réprobo disse...

Obrigado Cristina,
é verdade que durante grande parte das guerras de religião do tempo, das quaus sobressaiu a dos "Trinta Anos", subsistia a União Pessoal nas Coroas da Península.
É pena que nem sempre o espírito de cavalheirismo vingue nos conflitos. Uma outra frase exemplificativa que estimo bastante é a do Marechal de Saxe ao inimigo, tempos mais tarde, "Atirai primeiro, Senhores Ingleses".
Beijo

Anónimo disse...
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O Réprobo disse...

Enfim, Meu Caro Filomeno, o que importa é ler, suponho, apesar de certos poisos não parecerem os ideais...
É bom saber que algumas celebridades se sentem obrigadas para com o reconhecimento público e têm elegância de atitudes como essa, bem diversa do fastio afectado por muita vedetinha televisiva.
Sobre Fernando Rey, quero, um dia destes, fazer um post sobre «Tristana» e «Esse Obscuro Objecto do Desejo», em que a fleuma de gentleman está presente, no meio de todas as convulsões e libido tão bem caçadas por Luís Buñuel.
Ab.

Anónimo disse...
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O Réprobo disse...

Muito obrigado pela panorâmica familiar, Caro Filomeno. Só poderia augurar boas concretizações Quem escolhe Rey para "nome de guerra"...
Ab.

Anónimo disse...

Querem lá ver que o Filomeno - a quem aproveito para enviar cumprimentos como Digno frequentador deste belíssimo Blog, que efectivamente é - sabe mais sobre Velásquez do que Joaquim Letria a quem um dia, numa entrevista televisiva e a propósito de Velásquez, lhe foi perguntado se de facto, como se dizia, este Pintor Maior - um dos maiores coloristas de todos os tempos; a sua pintura "As Meninas" chegou a ser considerada 'o evengelho da pintura' - era filho de um português. Ao que ele respondeu, com um sorriso meio cínico, meio a gozar (aquele que ele sempre apresenta, aliás)... que não senhor, que era mentira, que esses eram boatos postos a correr mas sem fundamento algum!!! Mas também não admira esta resposta, porque entre a cultura do Filomeno e a do jornalista português existe seguramente uma distância como da Terra à Lua.

Cumprimentos, Paulo.
Maria

Anónimo disse...
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O Réprobo disse...

Querida Maria,
claro que um Vulto do Calibre do Filomeno não poderia embarcar nessas bebedeiras televisionadas. Eu amo a boa pintura, venha ela de Freixo de Espada À Cinta ou da Cochinchina. Mas é sempre consolador ver sangue de compatriotas no que admiramos.
Beijinho grato pelos elogios, como sempre magnânimos.

O Réprobo disse...

Meu Caro Fiomeno,
grande expressão civilizacional que a arte europeia atingiu neste seu recanto ocidental, por esses tempos. Hoje...
Abraço

Terpsichore Diotima (lusitana combatente) disse...

Caro Paulo
interessante e muito obrigada pela reacção, e por todas as tuas palavras amáveis.
Não reagi logo inclusivamente porque devido aos teus leitores de Espanha, quis procurar dados sobre um senhor de Espanha que muito admiro... farei depois um simples post sobre ele, no meu A Arte, quando houver tempo. Tratas-ee do grande Menéndez Pelayo. Espero que depois o Filomeno veja.

Quanto ao Velazquez:pergunto-me sobre e a figura do lado esquerdo, que nos olha.

Achei muito interessante o teu último parágrafo, e a experiência de contacto com o divino, com os frescos de Andrea del Sartro!! ... pois esses momentos do sagrado é que são os mais importantes...E como compreendo!


Beijinho!

Anónimo disse...
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Anónimo disse...

Señorita Terpsichore: Don Marcelino Menéndez Pelayo es un sabio español (muy citado por Antonio Sardinha en "La Alianza Peninsular), pero que en la España de hoy está considerado excesivamente "derechista" por los defensores del pensamiento político correcto, al punto de que la anterior y cesada Directora de la Biblioteca Nacional quería sacar su escultura de una zona noble del edificio a un rincón del sombrío y polvoriento jardín del Paseo de Recoletos madrileño..........

O Réprobo disse...

Querida Terpsichore,
Mendenez Y Pelayo foi uma referência inamovível de muitos dos meus mestres de pensamento. Tenho aí a História dos Hetrodoxos Espanhóis e a História das Ideias Estéticas em Espanha, que, com vergonha o confesso, ainda não li.

Acho muito interessante o facto de o pretendido auto-retrato nos dar uma reacção muito diversa dos outros que olham para fora do quadro, algo enviesada, como se não desse a importância que os restantes atribuem ao intruso...

A experiência florentina que aflorei, só vivida. Calculas - e num Homem penso-o mais difícil - o que é um instante de completa abstracção do espaço em que se situa, cheio de uma Presença Exterior que faz transbordar de maravilhamento? Pode-se sempre atribuir a desequlíbrio nervoso, mas não me parece nada. Até porque o que imediatamente antecedeu e seguiu foram períodos de grande tranquilidade e curiosidade sistematicamente aplicada.
Beijinho

O Réprobo disse...

Meu Caro Filomeno,
Só Tu para envergonhares assim o pobre amador de Arte que se gaba de ser Teu Amigo...

Quanto ao resto, é triste. Sabes bemque em matéria de Arte ou de História, das Ideias inclusivamente, nunca olhei a campos políticos, desde que não estejam deformadas por programas que condeno.
É uma tristeza.
Ab.

Terpsichore Diotima (lusitana combatente) disse...

Caro Filomeno
Sim, percebi isso agora quando fui procurar dados dele!!
Porque a maravilhosa obra que tenho e conheço dele não está comigo neste País - e que é a mais maravilhosa História das Ideias Estéticas e da Arte - comecei por procurar por esse título no google. Pois olhe que não aparece!! Incrível. Procurei nas Universidades! Dão licenciaturas de História da Arte, Estética, SEM O MENCIONAREM. Fiquei abismada, verdadeiramente - (isto não é nada para a Espanha...)
Nem sequer na página da Wikipédia sobre Estética, História da Arte em Espanha. Nada!! Desculpe as exclamações todas! Mas é que estou verdadeiramente ... a ferver!
Até na História da Arte Ibérica... enfim qualquer coisa que se refira a assuntos que ele (e provavelmente só ele) focou - como seja, o amor e inteligência e superioridade extraordinária com que falou de grande místicos poetas espanhóis.... (que maravilha! - Isso vai ainda tornar-se uma maravilha para o mundo, que só conhece Eckhart... e pouco mais)... e NADA DISSO aparece. Só o encontrei procurando pelo nome ( e depois mais tarde também já tendo o nome da obra mais exacto.
Mas na vossa Wiki que costuma ser tão boa em certas coisas, em História da Estética, só referia dois escritores estrangeiros, o que é um disparante.

Bem, eu não sei nada sobre as ideias políticas dele. Nem das do Filomeno.

Falo antes do que sei. E sei que o trabalho que li, nada mas absolutamente nada tem a ver com coisas cuja moralidade eu deteste (como é o caso dos movimentos que associam nacionalismo a extrema direita, ou de autores que façam apologias dubiosas da violência, etc.)

Diziam numa página, que o positivismo fora introduzido em Espanha, com Menéndez Pelayo.
Isso não sei.
Não sou positivista,e, pelo que sei do que isso significa, sou bem oposta a positivismo!

Mas também, pelo que sei do que é positivismo, não vejo como Menéndez pudesse ser assim tão positivista, já que

Menéndez Pelayo

fala daqueles poetas místicos com uma tal paixão, com um tal amor, com uma tal subtileza e profundidade que se aquilo é ser positivista... então, também eu o seria.
Que eu saiba, o positivismo opõem-se ao místico e à paixão e devoção ao transcendente.

Ora pois se algures o místico e a união são tratados com dignidade - coisa raríssima e que pobre de mim! Me tenho matado a procurar, sem a encontrar algures! E - que me desculpem - mas afirmo com firmeza! a Igreja não trata de tal com qualquer dignidade! Pois como dizia, se alguém o faz, compreendendo NO CORAÇÃO como se um verdadeiro artista fosse (um Da Vinci, ou um Andrea del Sartro...) ... a arte, a poesia e o mais importante de tudo isso o PURO CONTEÚDO ESPIRITUAL da arte desses maravilhosos poetas - esse homem foi Marcelino Menéndez Pelayo!



Cumprimentos!



PS - Anseio pelo dia em que eu possa ler mais de alguns dos escritores e poetas por ele tão sublimemente descritos, os quais me maravilharam!!




PS:

(vi que outros posts vieram então, os quais ainda não li, mas vou já postar este, só tendo lido o do Filomeno. Se algo se cruzar, fica assim explicado.)

Anónimo disse...
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Terpsichore Diotima (lusitana combatente) disse...

''A experiência florentina que aflorei, só vivida.''

É!

''Calculas - e num Homem penso-o mais difícil'' (esta parte já é batota!:))

o que é um instante de completa abstracção do espaço em que se situa, cheio de uma Presença Exterior que faz transbordar de maravilhamento?

''Calculo'' sim. ''Calculo'' muito bem!!!


''Pode-se sempre atribuir a desequlíbrio nervoso, mas não me parece nada.''

Não.

'' Até porque o que imediatamente antecedeu e seguiu foram períodos de grande tranquilidade e curiosidade sistematicamente aplicada.''

De luminosidade! De lucidez.


''Presença Exterior que faz transbordar de maravilhamento?'' ...


E de que falava eu ainda agora??


E uma vivência assim, que agora tu expressas, e que vem num momento em que o tema coincide, inesperada e involutariamente...porque estas coisas não podem ser faladas sem mais nem menos em todos os solos.

Terpsichore Diotima (lusitana combatente) disse...

''Mendenez Y Pelayo foi uma referência inamovível de muitos dos meus mestres de pensamento. ...a História das Ideias Estéticas em Espanha, ''

Que engraçado!...e que sorte! Grande Mestre! Eu descobri-o sozinha e tardiamente, como de costume, (não podia ter sido de outra maneira) ao buscar livros sobre estética na Fnac...num intervalo do meu exílio, e aquela gente maravilhosa da Fnac, encomendou para mim!
É das melhores Histórias da Arte. Das que conheço, é simplesmente, a minha preferida.

Beijinho

Terpsichore Diotima (lusitana combatente) disse...

Caro Filomeno
Muito obrigada. Culta, sou-o de menos, tenho ainda praticamente tudo por aprender!

O Réprobo no entanto, não precisa de resumir nada para mim, por favor.

Cumprimentos também.

O Réprobo disse...

O Caríssimo Amigo Filomeno bem podia colaborar nessa assessoria de pesquisa para a Musa petiscar, ehehehehehehe.
Fora de brincadeira, claro que tenciono ler esses monumentos, mas quando tempo for mais clemente.
Abraço

O Réprobo disse...

Querida Terp,
e olha que até aí eu costumava dizer que, sem com isso prejudicar a Fé, não tinha qualquer vocação para Místico. E daí para cá só o não digo pela memória desse momento.
Quando fiz a distinção do "homem" que consideraste trapaça queria apenas significar que nos mais célebres deles os encontros paroxísticos costumam resultar da demanda porfiada que antecede a Retribuição Sobrenatural, estigmas incluídos, enquanto que nas correspondentes do Sexo Feminino é mais frequente verificar uma abertura à Inundação Sagrada, quer a expectativa Dela se manifeste pela ansiedade, quer pela quietude.
E fico contente de esta condensação de algo da minha experiência no campo obter compreensão estribada em pontos de contacto com a Tua Vida Interior, sendo certo que as palavras serão sempre pálida sombra de qualquer dos pormenores desse transbordo sensitivo.
Beijinho