Discussão Por Um Jogo de Cartas de Jan Steen
Quando a escritora Amy Blackmarr
vem falar da viciação no jogo, dizendo que não era o ganho material que importava, mas a tentação de vencer a fasquia posta para não ganhar, ocorre-me a definição que Jorge Luís Borges deu de si, como um
bom burguês, hostil ao jogo com que aristocracia e plebe se entretinham. Olhando historicamente a Europa é certo que foi nesses meios que a aposta em jogatanas se estendeu, fosse como ostentação do desprendimento e perante o risco de uns, fosse como anseio de elevação de quem nada tinha a perder, por parte doutros. Mas a Contemporaneidade veio prejudicar esta conclusão, pois em nenhum país, tanto como nos EUA, a
batota atingiu níveis de importância e transversalidade tão elevados, tratando-se do estado burguês por excelência. Poder-se-ia acreditar que seria uma tentativa de igualar-se às elites estrangeiras, como a sacrossanta licença de usar armas. Mas penso ser mais, traduzir numa produção em cadeia o universal dueto de motivações
já detectado por Cardano - um remédio contra a melancolia e uma tentativa de dominar o destino. O grande matemático milanês, autor da primeira "teoria das probabilidades" de vulto, que correspondia a uma
sistematização da Sorte, veio afinal a revelar-se como o
aprendiz de feiticeiro que desencadeia forças incapaz de dominar. Depois de na vida ter vencido a impotência de forma muito mais segura do que Kleist - de quem apenas temos o seu testemunho de despedida - os dois filhos a que deu vida revelaram-se criminosos, morrendo um na forca por assassínio, outro no cárcere por ladrão, depois de ter pago uma primeira tentativa de salvamento paterna com a acusação de heresia ao progenitor. Também toda a trabalheira que teve para aprisionar os lances aleatórios dentro das Matemáticas viria a extenuá-lo ao ponto de se virar para a magia e o ocultismo, numa transigência perante as forças irracionais como causa do movimento do Mundo. E ainda associada ao jogo, a teoria que estabeleceu das correspondências fisionómicas, quer como predisposição de ganhadores, quer como indícios de reacção à quota de baralho recebida
acabaram por encontrar um rival muito mais competente em Hans
O Cavalo Inteligente, dado como grande jogador de
poker por saber contar bem e depressa, quando afinal o que fazia, depressa e bem, era captar as quase imperceptíveis mudanças de expressão humana dos opositores que lhe colocavam em frente.
Num Portugal em que se volta a falar da apetência por tentar a sorte, deve-se notar ser coisa que vem desde D. João II, obrigado a fechar célebre casa de jogo em Lisboa; e da nossa aba da
Belle Époque, em que a Mulher de um diplomata regressada à capital do Reino dizia que
onde deixara conhecimentos só encontrava parceiros. Mas pelo burgo ou na Estranja enferma tal vício sempre de uma contradição, a de querer dominar forças superiores quem não conseguiu o domínio de si próprio.