domingo, 16 de dezembro de 2007

Efeitos Colaterais

A crescente inintelegibilidade dos Olissipógrafos ameaça raiar o Absoluto. Lendo um artigo de Gustavo de Matos Sequeira sobre o Rossio, vejo-o referir-se a uma das extremidades da praça como o lado em que estão hoje a Loja das Meias e a Tendinha. Vá lá um novato na Capital tentar desembaraçar-se com guias destes...
Entretanto, o fecho do serviço de conforto ao estômago veio agravar os riscos de extinção de uma das duas espécies características da Lisboa de décadas atrás: os Engraxadores dizem aqui o quanto estão a ser prejudicados pelo bombardeamento impiedoso da ASAE. Devo dizer que em miúdo recorria mais ao serviço deles, quando o meu Pai me levava a engraxar as botas, no tempo da Outra Senhora, vê-los trabalhar era não pequena diversão. Passado a estudante semi-autónomo, a mesada era um bem escasso para comprar o mínimo de livros que precisava para sobreviver e, achando que em casa poderia, como jeitoso amador, obter um resultado aproximado, sacrifiquei este gasto. Tive uma recaída quando, vai para vinte anos, trabalhei na Rua da Prata, passando a dar polimento aos cascos graças a um especialista sediado na Praça da Figueira, porque o brilho da sua prestação era de molde a fazer evaporar as peneiras de qualquer concorrente por carolice. Mas tratava-se de um elemento atípico do ramo, sem conversa ou pregão, entretido em ouvir música nos headphones que ostentava.

Não assim o resto da classe, cujos chamamentos da freguesia, uma publicidade de talento por vezes maior que a de certos spots televisivos, era, com os anúncios gritados dos Ardinas, um dos pormenores típicos alfacinhas. Estes, sumidos que se encontravam, têm agora um desmaiado sucedâneo numa garotada que distribui as folhas de informação gratuita à hora de ponta, também emudecida, pois, não se pagando o produto, pode bem prescindir de aliciar a clientela.
Voltando aos Graxas - que parecem promover agora uma espécie de congresso -, vivem o drama do esmagamento das pequenas e médias empresas no quadro da União Europeia. Se querem ter Futuro, devem virar os olhares para o figurão do engraxador de outra dimensão, o que está pronto a dar polimento aos cascos do chefe e das figuras públicas, seja nos partidos, nos gabinetes, nas empresas, no Funcionalismo ou na Imprensa...

9 comentários:

T disse...

Também dei graxa a muito sapato lá de casa.
:)
Bj

O Réprobo disse...

Já agora, que tal estabelecer o link para o postal em que também falou dos estabelecidos na via pública lisboeta'
Bj.

Capitão-Mor disse...

De facto, será lamentável se esses personagens da Baixa lisboeta evaporarem daqui a alguns anos...
Talvez sejam retrógados, mas tenho a sensação que a nossa capital tem-se vindo a descaracterizar e muitas das seuas personagens típicas não existem mais ou estão completamente desvirtuadas.
Boa semana para si!

O Réprobo disse...

Também para o Amigo Capitão-Mor. Estão aqui os efeitos preversos da padronização. Calar-me-ia, se isto significasse uma elevação no nível de vida dos que, voluntariamente, deixassem as actividades em perda. Mas não! É não pensar nos problemas que causam, ao fechar um Estabelecimento porque não entra no cânone que substitui os miolos dos inspectores.
Abraço

T disse...

Para ardinas ler o António Ferro:
http://diasquevoam.blogspot.com/2007/10/os-ardinas.html
E para engraxadores:
http://diasquevoam.blogspot.com/2007/07/o-engraxador.html

Beijo:)

O Réprobo disse...

Muito grato.
Outro

T disse...

De nada patrãozinho:)
Bj

Bic Laranja disse...

A um dado passo do texto já dava por perdidos os engraxadores. Mas no fim de contas vi que não. Não sei se me alegre...
Cumpts.

O Réprobo disse...

Pois é, Caro Bic, é parca alegria ver que nos mandantes do País é esse - e apenas esse - o brilho a que temos direito...
Abraço