Ghost Writer
A Língua está condenada a camuflar, moderando a integralidade de cada pensamento. Ao adoptar a forma de Poesia, contudo, faz mais, por escolher a expressão menos imediata, furtando a intenção patente de significar, através da transmissão velada de um sentido. Em vez da mutilação da personalidade residir na amputação que qualquer delaração parcelar dela implica, há uma tentativa de ampliar o alcance do Poeta, projectando uma grandeza que só corresponde aos anseios que da própria dimensão desenvolve. É furtando a aridez condensada que os "vizinhos" conhecem que, catapultando-se num desmedido conjunto de caixinhas chinesas, quais as salas escancaradas e sucessivamente percorridas da Vida, se procura dar a ilusão de dimensão maior ao Leitor e, em ricochete, a si próprio, sendo certo o desmentido realista que cada falhanço troveja, reduzindo o solipsismo ambicioso de negar-se à percepção dura da inescapabilidade do que se é. O que é o contrário do esperado, ou como a marca do Prisioneiro se confunde com o símbolo da Liberdade.
De David Mourão-Ferreira
ARGUMENTO
De versos em que me escondo
encho os meus próprios ouvidos
Digo abrigo em lugar de ombros
rua em vez de paraíso
dádiva em lugar de roubo
em vez de pólvora vidro
rosto rasto ruga rogo
em vez de polen e cisco
Só vivo se me prolongo
Caminho se não caminho
Sempre uma deusa bifronte
esta língua em que me exprimo
Digo remos vejo sombra
Chamo ramos ao que é vivo
Sonho que sonho o que sonho
E recomeço E desisto
É não indo ao meu encontro
que me encontro a sós comigo
Ah no incesto das ondas
com que pânico me atinjo
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