segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

Ambiguidades do Captar

Embora as minhas preferências absolutas vão para Velázquez, G. Bellini, Mantegna, Turner... se me perguntarem por pintores grandes da França Oitocentista, não posso deixar de pôr à frente um nativo de 25 de Fevereiro, Renoir. Não o louvarei pela mestria técnica, ou sequer pela dissolução das formas na luz, para o que há gente mais preparada. Quero destacar a Atenção, essencial em qualquer artista plástico que não enverede pela pura fantasia, mas em que é difícil de encontrar imortalizador da dos modelos, com felicidade.Uma obra-prima de referência obrigatória, O Camarote, merece toda a fama que tem. Muito do que torna a obra tão conseguida é o contraste entre a figura feminina, que, certa das armas que tem, se oferece placidamente para ser olhada, enquanto o homem, em muito menos destaque, assenta os auxiliares da vista curta a outro ponto, desinteressando-se daquela que tem tão próximo e, presumivelmente, muitos outros olham. Mirará as reacções à sua companhia? Ou procurará uma rival dela, querendo acrescentar conquista ao território incorporado? Para o espectáculo é que não olha de certeza, como o olhar dela também, aliás, parece muito pouco concentrado para fazê-lo.
Menos conhecido, A Primeira Saída é um prodígio pelo que revela de deslumbramento e descoberta de um mundo novo, com um minimalismo de exposição dos traços. Do jogo do título com a absorção sugerida pela suavidade de um perfil escassamente sugerido, com as costas que nos vira a indicarem a fixação em qualquer sensação que lhe sabemos nova. Leveza e aplicação só possíveis no "interesse desinteressado" quando a inexperiência ainda impera.
E por fim, O Baloiço, talvez o menos comentado, que considero absolutamente genial. Na indissociabilidade da Mulher e da Criança, logo infundindo uma percepção de maternidade, o que poderia ser a experimentação da segurança do baloiço para o rebento é desmentido pelo coquetismo do gesto com que compõe o cabelo. A miúda olha, surpreendida pelo roubo do brinquedo, mas com a admiração de quem quer ser como ela. E o triângulo amoroso sugerido pelos dois homens... quem será o legítimo, quem será o intruso? Quer a superstição que esteja encostado ao casamento como à árvore o que tem títulos sociais, enquanto que o rosto rapado e o facto de se dirigir à que desvia pudicamente o olhar sugere o piropo que desencadeia a afectação do pudor. Pode também não ser nada disto, por exemplo um pai que vigie o pretendente à filha, acompanhado pela irmãzita dela, que tenta perceber se gosta do futuro cunhado, aquele senhor que lhe disseram ser muito querido à Mana... mas uma vez mais o que se destaca é o direccionamento para o que prende. No célebre «Peeping Tom» Michael Powell filmou a macabra defesa da tese de que o que mais gera o medo é o medo alheio. Com Renoir podemos concluir que o que mais evidencia a atenção de quem pinta é a dos que retratou com génio.

10 comentários:

Ricardo António Alves disse...

A Primeira Saída é um prodígio de sugestão. Muito boa a tua análise, em especial a d'O Camarote.
Ab.

Anónimo disse...

Que bonito ficou o blogue!
Beijo

Bic Laranja disse...

Há grande arte nesta crítica.
(Aquele dos binóculos estava distraído.)
Cumpts.

O Réprobo disse...

Obrigado, Mestre e Amigo, os quadros "expostos" é que são um Mundo. Lembro-me que «A Primeira Saída» também já surgiu no «Abencerragem».
Abração

O Réprobo disse...

Querida Cristina,
Também Renorriana? Um Verdadeiro Achado, Madriña Mua.
Beijo

O Réprobo disse...

Meu Caro Bic Laranja,
há, mas como objecto, tão-só. O binoculado é como os comilões, tanto querem enfardar que não saboreiam o melhor do manjar, tantas vezes mais perto.
Abraço

Luísa A. disse...

Meu caro Réprobo, gostei imenso de ler esta sua crítica. Na qual não vejo qualquer ambiguidade de captação: todas as hipóteses são expressivamente sugeridas. A imaginação não desmerece o poder de observação. E para quando temos «o romance»? :-)

O Réprobo disse...

Querida Luísa,
Bondade Sua, mas até conseguimos enganar as Amigas quando gostamos muito de um pintor...
O dito está pensado. A concretização? Pois para quando tiver mais tempo, que isto anda diabólico.
Beijinho grato

Anónimo disse...

Não há dúvida, que as artes plásticas dão oportunidade, tal como , os livros, de serem sempre interpretados de maneira diferente, e conforme os dias, pelo o observador, ou pelo leitor.

No Camarote, sempre assumi que se estaria no início da peça, ou no final de um intervalo.
Quanto à figura feminina, estamos de acordo, quanto à masculina, penso que observa a sua amante; toda a sua postura de se quase esconder para observar assim me leva a acreditar.

No Balouço, nunca vi a mulher como mãe, presumindo que a criança estaria com um dos homens, que a levou para melhor esconder a sua tentativa de fazer a corte a outra, que se deixa encantar por dois, ainda, sem saber qual escolher.

Já viu a diferença?

O Réprobo disse...

Querida Marta,
pois vejo; e dessa diferença nasce a riqueza que gostaria de ver em cada tema debatido. Muito obrigado pelo Contrubuto que tanto abrilhanta.
Beijinho