O Mito Na Sua Razão
Alcácer-Quibir, por Manuel de Macedo
4 de Agosto, dia da hecatombe. Muito por culpa do que nos tornámos é hoje o Sebastianismo saco para toda a pancada, a antítese mais radical do pau para toda a Lusa Obra que os seus cantores queriam. As contrafacções da História da Mentalidade ajudam a tanto, segundo a conveniência do momento. Guerrear a moirama no Norte de África não era mais do que a continuidade estratégica e doutrinária do que os Antecessores da Dinastia de Avis haviam feito. E, de resto, era o que concitava a concordância de Povo e intelectuais, irmanados na opção, um pelo sentir palpitante da necessidade de dar luta ao inimigo conhecido e os outros pela tangibilidade pensável desse teatro de guerra, numa altura em que as Descobertas eram domínio reservado da Ordem de Cristo, alfim encaixada na Coroa ponto por ponto, sem extensão ao entusiasmo coevo da Grei.Aontecido o desastre, ergueu-se a esperança no regresso do Desejado não como mais tarde se tornou, e já o Grande Je Maintiendrai, em texto inesquecível, zurziu - a demissão patética do esforço, vivendo do sonho irrealista. Na altura, sem quadros militares, era o refúgio possível para não aceitar a derrota. E onde a minha própria família política quer ver uma manifestação da subsistência da Ideia Nacional, projectada numa grandeza sorelianamente mítica, a informar a acção futura, vejo eu apenas a fidelidade ao Senhor, que já não pouca honra seria: os povos não costumam amar os venidos, por que o fariam neste caso? Porque a construção da biografia real pós-batalha dava o Rei como penitente, coberto das culpas da Derrota, não desejando reocupar o trono por se dele crer indigno. Na atmosfera ultra-cristã daquele fim de Quinhentos a expiação pessoal em prol da felicidade do seu Povo encontrava a retribuição imediata na assimilação ao Salvador e correlata recusa da adoração dos deuses impostos de fora. Para os menos piedosos, a comoção em face do sofrimento auto-imposto e arrastado gerava o perdão. Durante dois séculos a acção própria não foi travada pela Referência sempre viva, apesar da sobrevinda impossibilidade física do Resgate do Regresso. Só ao vitimar-nos o internacionalismo centralista e ávido de comparação e seguidismo em face do Alheio é que a Referência Sebástica deixou de ser estímulo do esforço para se transformar na nostalgia lunática que artificialmente permitia abstrair da decadência que entrava pelos olhos dentro.
6 comentários:
"...a demissão patética do esforço,vivendo do sonho irrealista".Bem visto!
(Tenho de procurar o texto de "Je Maintiendrai"referido)
Beijo
Caríssimo Amigo:
Parabéns pelo texto brilhante, como sempre. Concordo plenamente com ele no que se refere à demissão do esforço, da responsabilidade, atirando com eles para as calendas do regresso de um Desejado, numa procrastinação contínua e absurda.
Não concordo com ele, contudo, quanto aos motivos da batalha. Os que o meu Caríssimo Amigo apontou fazem parte - desculpe - do assassinato de carácter que posteriormente colaram ao Rei.
Com efeito, a campanha de África já estava decidida pelas Cortes de 1562. As razões eram múltiplas, e de ordem quer geoestratégica quer comercial.
Com efeito, o Império Otomano, agora sob a égide de Selim II, filho de Suleimão, o Magnífico, expandira-se por todo o Norte de África, debatendo-se ainda com dificuldades em Marrocos, devido a resistências que os seus tratados, subornos e exércitos não conseguiam de todo controlar.
O Império Otomano vivia também do corso, e os seus corsários e piratas infestavam o Mediterrâneo e toda a zona que ia desde Larache até Cádiz e Faro. Apesar da derrota naval sofrida em Lepanto, em 1571, o Império em breve reconstruía a sua frota, e os receios colocados nas Cortes de 1562 - de que os otomanos tomassem conta do Estreito de Gibraltar, fechando o Mediterrâneo (principalmente depois de D. João III, por razões economicistas, ter abandonado várias praças-fortes do Norte de África) - ganhavam nova força. Também a actividade corsária era agora mais que muita, atacando os nossos navios que regressavam da Índia, e chegando a fazer raides sobre o Algarve.
Assim, seguindo as determinações das Cortes, D. Sebastião começou a preparar expedições militares ao Norte de África, contando com a ajuda de forças multinacionais, tal como o seu primo D. João de Áustria havia feito em Lepanto. A ideia era a de aproveitar o resultado de um golpe de estado local, em que o emir Mulei Maluk (aliado dos otomanos) destronara o seu sobrinho, Mulei Muhamed. Este, em troca da ajuda portuguesa, entrega a Portugal a praça-forte de Arzila, uma das abandonadas por D. João III.
A reposição das praças-fortes portuguesas e o afastamento dos otomanos levaria ao afastamento dos corsários e ao estabelecimento trocas comerciais com Marrocos e ao restabelecimento de rotas comerciais terrestres, aproveitando as caravanas de comércio do ouro.
Assim, não era só o interesse comercial de Portugal que estava em jogo; não era só a ideia da «expansão da Fé», propalada inteligentemente pela Igreja para arranjar apoios; não era só a busca de glória militar do nosso Rei. Era, principalmente uma questão de sobrevivência, não só do Império Português, mas talvez mesmo da própria Europa.
O Império Turco estava em expansão, era necessário travá-lo.
D. Sebastião enfrentou mil e uma dificuldades, erros, impreparações, e mil e uma traições. A derradeira, quando no chamado «minuto vitorioso» da Batalha dos Três Reis, em que a carga de cavalaria pesada do Duque de Aveiro entra como faca quente em manteiga pelas hostes adversárias (enquanto o terço de D. Sebastião eliminava a artilharia inimiga a golpes de espada), o célebre grito de «Ter, ter! Volta, volta!» que vai provocar a retirada da nossa cavalaria e desencadear o desastre, vai levar a que D. Sebastião tente desesperadamente salvar «o que poderia ser salvo», ou seja, acudir aqui e ali, onde a sua ajuda e dos seus exímios cavaleiros fosse mais necessária.
Quando, perante a imensidão do desastre, lhe vêem pedir «para que se salve», ele recusa. Recusa deixar morrer aqueles desgraçados sem que tente, pelo menos, lutar até ao fim. Dizem-lhe que então irá morrer. Ele responde, num sorriso amargo «Morrer sim, mas devagar...», ou seja, «calma, que isto ainda não acabou». Assim ditavam os códigos de Cavalaria, coisa que os novos historiadores esquecem.
O resto, faz parte da lenda. Há imensos dados que nos dão a certeza de que D. Sebastião sobreviveu à batalha, tendo sido transportado, muito ferido, num navio da Armada para Portugal, onde o desembarcaram no Forte do Beliche, em Sagres. Nos campos de Alcácer, entretanto, desenrolava-se a farsa do «reconhecimento» do corpo do Rei. Os seus validos sobrevivos haviam-lhe despido a armadura e vestindo com ela um cadáver desfigurado. Um truque velho de milhares de anos: a troca do rei pela torre, o «roque» do xadrez.
Filipe II encena a segunda parte da farsa, mandando sepultar nos Jerónimos o corpo da «torre». Até Donizetti se refere a isso na sua última (segundo creio) ópera, «D. Sebastião» (se não a tiver, enviar-lhe-ei por e-mail uma das árias, a belíssima «Deserto in Terra»).
Enfim, Caríssimo, esta missiva já vai demasiado longa, e com tanto que lhe quereria dizer acerca deste nosso Rei-Cavaleiro, Grão-Mestre da Ordem de Cristo, teimoso e arrogante, mas também tremendamente humano e dedicado à Pátria, e de uma coragem extraordinária.
Mas bastará, como consolação póstuma desse 4 de Agosto de 1578, relembrar que o objectivo primário da batalha de Al-Kasr Al-Kebir foi alcançado: o Império Otomano encontrou ali o fim da sua expansão, e começou o seu declínio. À custa de Portugal.
E, por fim, uma curiosidade: como penhor da ajuda de D. Sebastião, os partidários do falecido Mulei Muhamed enviaram 600 dos seus melhores cavaleiros para defenderem Portugal da invasão espanhola. Tombaram galantemente na Batalha de Alcântara, provocando o caos entre os mercenários italianos do Duque de Alba.
Um grande abraço deste seu amigo a quem esta data ainda provoca uma profunda dor de alma.
Era um libelo excelentemente concebido contra as elaborações intelectuais do Sebastianismo como marca inescapável da Portugalidade. Não tenho o link à mão, ou tê-lo-ia acrescentado.
Beijo
Meu Caro Carlos Portugal,
a que Português digmo do nome não causará dor de alma esta revisitação?
Mas não estamos em discordância, repare que eu salientei a continuidade estratégica das operações de outros Reis da Segunda Dinastia, justamente a eliminação das bases muçulmanas que tornariam insegura toda aquela área marítima vital.
Há várias razões passíveis de serem aduzidas para qualificar de encenação o reconhecimento. Uma, que me faz suspeitar da veracidade dele, é a recusa de D. Fernando de Castro mirar o seu Soberano em cadáver. Um fidalgo português daquela estirpe, por muito afeiçoado que fosse ao seu Rei, tinha traquejo mais do que suficiente para contemplar corpos mutilados, fora treinado para isso. E a Fé não lhe deixaria dúvida de que tombado no combate por Cristo um melhor lugar estaria reservado ao Falecido. O que poderia contender com a sua honra era jurar falso, razão plausível para a recusa, a que outros se furtaram por vitória da lealdade ao primeiro juramento. Teriam assim prestado erróneas declarações quanto aos restos mortais, para afrouxar a vigilância inimiga e facilitar a fuga Real.
Ficará semptre por esclarecer o brado da retirada. Filipe II (I) fez o seu papel. Mas honra lhe seja, timha desaconselhado o empreendimento.
Claro que o mais importante era avaliar a terra em que podia germinar a ânsia do Retorno. O que tentei fazer.
Grande abraço.
Pois, quase sempre, envolto em brumas, mas brilhante...
Embora Excelsa Terpsichore, as brumas tivessem sido remetidaspara o Futuro, enquanto que o brilho era celebrado a tempo inteiro, pelo que se constatava, como pelo que se esperava, por Camões.
Beijo
Enviar um comentário