Vale Tudo
Como todos os arrivismos medíocres também o Carnaval se teve de inventar uma genealogia em que a latinidade do adeus que significava a palavra vale, em respeitando à carne, passasse a portuguesa acepção de excesso em modalidade apropriada. Excesso e igualização estavam presentes nas Lupercais, celebradas em equivalente do 17 de Fevereiro, com os elementos de máscara presentes nos atavios dos lupercos, o do desregramento no sangue da cabra sacrificada com que se manchava a fronte dos circunstantes e nos três dias em que o Povo é rei, com desfile em passo de corrida, fazendo barulho e açoitando a multidão, a qual voluntariamente se oferecia à flagelação, para garantir casamentos felizes e curar a esterilidade.
Em Portugal, a transversalidade estava garantida, com os fidalgos pagando pelo prazer estragar e de entrar a cavalo nas feiras e nos bailes, aterrorizando tudo e todos; e com o Povo jocosamente canonizando um Santo Entrudo que lhe enchesse a pança, como variante da esmola pedida, ambas decaindo para a alarvidade e desordem, veja-se o poema de António Serrão de Castro:
Filhós, fatias, sonhos, mal assadas,
Galinhas, porco, vaca, mais carneiro,
Os perus em poder do pasteleiro,
Esguichar, deitar pulhas, laranjadas;
Esfarinhar, pôr rabos, dar risadas,
Gastar para comer muito dinheiro,
Não ter mãos a medir o taverneiro
Com résteas de cebolas dar pancadas;
Das janelas com tanto dar na gente,
A buzina a tanger, quebrar panelas,
Querer em um dia comer tudo;
Não perdoar arroz nem cuscuz quente,
Despejar pratos, e alimpar tijelas,
Estas as festas são do gordo Entrudo.
O Grande Pina Manique, enquanto lhe fora possível, proibira as mascaradas, por facilitarem a ocultação de Jacobinos, mas em 1823, depois de mais uma vez lhes ser recusada a licença, Silva Carvalho ordenou que ela fosse concedida, perdendo-se no vácuo a recomendação policial contra os distúrbios. Foi instrumento do Poder Liberal, que surgiu o chéché, ou Velho de Entrudo, acinte caricatural do Ancien Régime que depressa se virou contra os seus criadores, já que, usado para pedinchar ou proferir e ensaiar violências, os Populares lhe colaram o odioso dos impostos e extorsões que provinham de Malhados & Sucessores. Do conceito em que a Cristandade o enformara, a descarga purificadora da peçonha dos prazeres armazenados, funcionando como sinal de abjecção a evitar no resto do ano, só restava a parte permissiva. Agora tudo se resumia à mediocridade das partidas, dos ovos e sacos cheios de imundícies atirados tanto pela gente mais grosseira, como entre os risinhos das meninas mais prendadas, inventando-se linguagem brejeira para o efeito, numa ressurreição sem esforço das antigas pulhas, as ineptas rimas das perguntas d´engano insultuosas que eram grande divertimento de outrora.Em Portugal, a transversalidade estava garantida, com os fidalgos pagando pelo prazer estragar e de entrar a cavalo nas feiras e nos bailes, aterrorizando tudo e todos; e com o Povo jocosamente canonizando um Santo Entrudo que lhe enchesse a pança, como variante da esmola pedida, ambas decaindo para a alarvidade e desordem, veja-se o poema de António Serrão de Castro:
Filhós, fatias, sonhos, mal assadas,
Galinhas, porco, vaca, mais carneiro,
Os perus em poder do pasteleiro,
Esguichar, deitar pulhas, laranjadas;
Esfarinhar, pôr rabos, dar risadas,
Gastar para comer muito dinheiro,
Não ter mãos a medir o taverneiro
Com résteas de cebolas dar pancadas;
Das janelas com tanto dar na gente,
A buzina a tanger, quebrar panelas,
Querer em um dia comer tudo;
Não perdoar arroz nem cuscuz quente,
Despejar pratos, e alimpar tijelas,
Estas as festas são do gordo Entrudo.
Não tardariam aí os fraldas de camisa, os marmanjões que gostam de se meter em trajo feminino e assim exibir-se para gáudio que julga extensível aos outros, mas é, indubitavelmente, seu exclusivo.
Na Roma das grandes conquistas as antecessoras desta vil palhaçada foram proibidas. Augusto, querendo anestesiar oposições, reinstaurou-as. O Estado Novo Português, tendo de conviver com o que herdara, tentou dar-lhes uma face mais digna e cordata, com o corso bem ordenado e a mobilização das energias para os arranjos dos carros, longe contudo da espectacularidade que no Brasil transformou, sambando, uma caterva de maus instintos em Arte verdadeira.
Mas isso era no tempo em que o mais vil dos carnavais não era protagonizado, sem época específica, pela classe política...
13 comentários:
Que maravilha de post!
beijocas
Ah, ah, ah! Bravo! Este merecia ser amplamente divulgado!
Querida Zaz,
bondade Tua, mas sinto-me todo enlarachado. Claro que estas épocas específicas puxam por nós e gosto de escarafinchar as raízes delas.
Beijoka
Meu Caro TSantos,
como sabes, não gosto destes festejos, pelo que havia que procurar tirar todo o partido - não no sentido de facção, mas no de proveito - dela.
Abraço
Essa do "mais vil dos carnavais" define muito bem o circo em que Isto se tornou...
Pous eu acho que o Teu grande acrescento de "circo" é que ilustra bem esta grande barraca...
Ab.
Circo, barraca...bom trocadilho!
Fácil, facílima, "arena polítoca" não é expressão consagrada?
Abração
É, o vocabulário politiquês presta-se às mil maravilhas a estes comentários circenses... ;-)
Até porque não há dúvida de que o homem comum foi atirado aos leões. O que nos leva para circos de outro género, na ausência de domador...
Ab.
Pergunto-me se um bom nome para o momento
que se vive actualmente em Portugal, não seria: "O Grande Circo" ?!
Ab
Desde que "grande" não inculque qualidade superior...
Ab.
Evidentemente que não, que ideia! ;-)
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