Nostalgias Agravadas
Medalha de Álvaro de Brée
Será talvez defeito meu. A pena infinita que me causa ver a cidade que amei pasto das ambições, concorrências e propagandas não revolta já, antes incrementa o enfado imenso causado pela contemplação nela dos formigueiros humanos demasiado ocupados para viver, que se procuram asssemelhar aos de qualquer metrópole, diluídos nas carreiras, divórcios e depressões, únicas formas que lhes restam de tentar afirmar um pouco de indiviualidade, esperança logo desbaratada pela semelhança com o vizinho do lado. Eu ainda sou do tempo... em que as pessoas agiam como tais, com olhos e vagar para se interessarem por coisas e interlocutores concretos que escapassem à ordem do dia ditada pelos pivots dos noticiários televisivos. E em que cada adulto quase me entrevistava, interessando-se genuinamente pelo rumo que as minhas preferências me faziam tomar. Deste interesse - que era imperceptível lisonja - nascia a contrapartida de encarar cada um como autonomia real, nada da subsunção a etiquetas que disputam o espaço fugidio de um não menos fugitivo tempo. Já nem a confiança pessoal subsiste, como o investimento de afecto em indivíduos que o solicitam periodicamente se evapora. Triste decadência própria que faz cair na desvalida condição de lamentar-se, resgatada todavia pela tristeza com capa de altruísmo, carpideira do ambiente que foi e já não é, coisa própria e alheia, como todas as memórias dos elementos externos que nos moveram e onde nos movemos.
Escreveu Fernando Pessoa, na segunda das «IMAGENS DE LISBOA VIVIDAS NA INFÂNCIA»:
MÁGOA REVISITADA
Ó céu azul - o mesmo da minha infância -
Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflecte!
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora e de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu sinta.
Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo...
E enquanto tarda o abismo e o Silêncio quero estar sòzinho!
Outra vez te revejo,
Cidade da minha infância pavorosamente perdida...
Cidade triste e alegre, outra vez sonho aqui...
Eu? Mas sou eu o mesmo que aqui vivi e aqui voltei,
E aqui tornei a voltar, e a voltar.
E aqui de novo tornei a voltar?
Ou somos todos o Eu que estive aqui ou estiveram,
Uma série de contas-entes ligadas por um fio-memória,
Uma série de sonhos de mim de alguém fora de mim?
Outra vez te revejo,
Com o coração mais longínquo, a alma menos minha.
Outra vez te revejo - Lisboa e Tejo e tudo -,
Transeunte inútil de ti e de mim,
Estrangeiro aqui como em toda a parte,
Casual na vida como na alma,
Fantasma a errar em salas de recordações,
Ao ruído dos ratos e das tábuas que rangem
No castelo maldito de ter que viver...
Outra vez te revejo,
Sombra que passa através de sombras, e brilha
Um momento a uma luz fúnebre desconhecida,
E entra na noite como um rastro de barco se perde
Na água que deixa de se ouvir...
Outra vez te revejo,
Mas ai, a mim não me revejo!
Partiu-se o espelho mágico em que me via idêntico,
E em cada fragmento fatídico vejo só um bocado de mim -
Um bocado de ti e de mim!...
Será talvez defeito meu. A pena infinita que me causa ver a cidade que amei pasto das ambições, concorrências e propagandas não revolta já, antes incrementa o enfado imenso causado pela contemplação nela dos formigueiros humanos demasiado ocupados para viver, que se procuram asssemelhar aos de qualquer metrópole, diluídos nas carreiras, divórcios e depressões, únicas formas que lhes restam de tentar afirmar um pouco de indiviualidade, esperança logo desbaratada pela semelhança com o vizinho do lado. Eu ainda sou do tempo... em que as pessoas agiam como tais, com olhos e vagar para se interessarem por coisas e interlocutores concretos que escapassem à ordem do dia ditada pelos pivots dos noticiários televisivos. E em que cada adulto quase me entrevistava, interessando-se genuinamente pelo rumo que as minhas preferências me faziam tomar. Deste interesse - que era imperceptível lisonja - nascia a contrapartida de encarar cada um como autonomia real, nada da subsunção a etiquetas que disputam o espaço fugidio de um não menos fugitivo tempo. Já nem a confiança pessoal subsiste, como o investimento de afecto em indivíduos que o solicitam periodicamente se evapora. Triste decadência própria que faz cair na desvalida condição de lamentar-se, resgatada todavia pela tristeza com capa de altruísmo, carpideira do ambiente que foi e já não é, coisa própria e alheia, como todas as memórias dos elementos externos que nos moveram e onde nos movemos.
Escreveu Fernando Pessoa, na segunda das «IMAGENS DE LISBOA VIVIDAS NA INFÂNCIA»:
MÁGOA REVISITADA
Ó céu azul - o mesmo da minha infância -
Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflecte!
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora e de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu sinta.
Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo...
E enquanto tarda o abismo e o Silêncio quero estar sòzinho!
Outra vez te revejo,
Cidade da minha infância pavorosamente perdida...
Cidade triste e alegre, outra vez sonho aqui...
Eu? Mas sou eu o mesmo que aqui vivi e aqui voltei,
E aqui tornei a voltar, e a voltar.
E aqui de novo tornei a voltar?
Ou somos todos o Eu que estive aqui ou estiveram,
Uma série de contas-entes ligadas por um fio-memória,
Uma série de sonhos de mim de alguém fora de mim?
Outra vez te revejo,
Com o coração mais longínquo, a alma menos minha.
Outra vez te revejo - Lisboa e Tejo e tudo -,
Transeunte inútil de ti e de mim,
Estrangeiro aqui como em toda a parte,
Casual na vida como na alma,
Fantasma a errar em salas de recordações,
Ao ruído dos ratos e das tábuas que rangem
No castelo maldito de ter que viver...
Outra vez te revejo,
Sombra que passa através de sombras, e brilha
Um momento a uma luz fúnebre desconhecida,
E entra na noite como um rastro de barco se perde
Na água que deixa de se ouvir...
Outra vez te revejo,
Mas ai, a mim não me revejo!
Partiu-se o espelho mágico em que me via idêntico,
E em cada fragmento fatídico vejo só um bocado de mim -
Um bocado de ti e de mim!...
11 comentários:
Mas sempre Lisboa, para quem dela é.
Mesmo para Fernando Pessoa que, apesar de tudo, não a deixou
Beijinho
Não a deixou, realmente, mas sentiu-se deixado por ela, Marta. Qual de nós não passou já por uma sensação algo similar perante lugares que calcorreou em tempos felizes e viu depois transformados? Mas essencial é a prova de forças entre as imagens guardada da cidade e criada de si. Daí que os outros, na lembrança cativada Dos que eram, como na desolação face aos que não correspondem já ao ideal, talvez seja a melhor maneira de salvarmos o nosso amor ao sítio e a sanidade psíquica sitiada.
Beijinho
É assim que se sente?
Oh Paulo! tenho tanta pena.
Beijinho
Não há problema de maior, desde que se não esperasse demasiado.
E, já agora, acrescente-se um "m" a sejam, por caridade.
Beijinho
um "m" que forme "sejam", digo
Caro Paulo
Embora o não pertencer a essa decadência, tenha tido (no meu caso) um preço incalculável... Preço que só quem é grande poderia compreender...
e embora compreendendo todos os motivos,
tenho ânimo para combater desânimos e decadências.
:)
Querida Terpsichore,
ânimo para não sermos inteiramente submersos por elas, certamente. Mas dessa endurance faz parte o reonhecimento do estado a que se chegou, não a alienação de não o olhar - e assim o tenar desmentir. Não estou a planear qualquer medida drástica, farei por viver com a situação íntima e continuarei a dizer o que me vai na alma sobre a Pública, sem desgastes demasiados.
Beijo
''dessa endurance faz parte o reonhecimento do estado a que se chegou, não a alienação de não o olhar - e assim o tenar desmentir.''
Verdade...
Cuja admissão é já uma vitória.
Beijo
Pode(m-se) mover montanhas...
Fazê-las dançar, mesmo!
Não resisti.
Beijinho
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