sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

O Carteiro Toca Sempre Duas Vezes

O Carteiro da Vila por William Edward MillnerEnquanto o sono não chegava dei, nesta noite, a matutar sobre o carteiro de Vila Nova de Gaia. E comparei mentalmente a desculpa para baixezas várias que o Romantismo literário e as cinematografias ocidentais fizeram residir no Amor, ao ponto de contaminarem os tribunais, que julgavam os crimes passionais com compreensão que outros motivos não podiam ambicionar. Aqui, porém, a Defesa do desencaminhador de cheques teve o grandíssimo descaro de dizer que a Paixão levara o Arguido a perder a consciência da própria ilicitude. Se acreditada, não poderia ser criminalmente condenado, mas, ao contrário da benevolência julgadora anteriormente relembrada, o sentimento amoroso ficaria em má situação, comparados os seus efeitos aos das bebedeiras e das drogas...
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Ainda não percebi bem se o acusado tinha uma relação apenas com uma das irmãs instigadoras, ou se com ambas, como a elipse do verbo pernoitar, facilmente substituível pelo esmiuçar realista da conjugação com base em perna, sugere. Na segunda hipótese seria de confrontar dois dos mitos que a sexualidade contemporânea criou, o do par de manas como oferta sexual e o do carteiro visitador, substituto da paternidade atribuída ao padeiro em tantas das nossas terras de Província...
Talvez considerandos destes hajam estado por detrás da entrega das cartas por Mulheres das aldeias do Norte de Portugal, como documenta a foto de F. Rocha, tanto ou mais do que a ocupação dos homens, sem tempo dispensável.
Mas a abstractização do Carteiro, esquecendo-lhe as tentações e pulsões de qualquer outro ser humano, encontra-se expressa brilhantemente num conto policial filosófico, «O Homem Invisível», de Chesterton, em que todos dão por interdito à visibilidade aquele em que ninguém repara, por reduzido a uma função. E as vistas assim encurtadas não o encaram como podendo sentir e... matar, quer dizer, existir.
Pergunto-me se não terá sido uma inconsciente tentativa de provar humanidade a estar por trás da subtracção dos pagamentos feita por este funcionáro até aí exemplar. E se o facto de não ter ficado com os dos seus endereços, mas com os dos giros dos colegas, mais do que uma variação sobre o mandamento de não roubar na vizinhança, não haja sido uma vingança que encarasse como abstracção total os beneficiários que desconhecia...

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