segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

Verbosidade Mortuária

Homenagem a Delacroix, de Fantin-Latour, sobre foto de NadarOuvida a Dr.ª Ana Gomes sobre Suharto e o que à minha consciência apetecia desbobinar sobre Habache, lutei toda a manhã com a tentação de botar faladura sobre dois recém-falecidos cujas vidas encerraram muitos actos que desaprovei. Não, o farei, porém. Não é por cedência à portuguesíssima e viciosa mania de dar todos os mortos por bons, compensando o mal que deles em vida se disse, muitas vezes por não melhor razão do que exibir-se forjando sagacidades que atraíssem cúmplices. Mas sempre vi como integrante do conceito de decência anglo-saxónico a identificação das palavras ditas nas exéquias com a Eulogy, uma universalização do elogio fúnebre que por outros lados se reserva a mortos mais ou menos eminentes. Não podendo dizer bem, o melhor é calar e reservar as forças da combatividade para ocasião mais própria do que a passagem deste Mundo a outro.
Ramalho Ortigão, transmitindo-nos impressões de França, escreveu:
Aqui há tempos em Marselha (cuido que foi em Marselha) morreu um procurador geral, cuja limpeza de mãos não era integralmente garantida. No dia em que êle se enterrou, estando já o cadáver na cova, aproximou-se um dos circunstantes e pronunciou perante a multidão silenciosa o seguinte discurso:
«Senhores! É perante a morte que a verdade se deve manifestar a tôda a sua luz. O cidadão que aí jaz exânime foi um patife. Tenho dito.»
A assembléia retirou-se abanando aprovativamente a cabeça como se fosse dizendo consigo: - O homem falou bem.
(...)
Falemos com franqueza: Para que há-de a gente malquistar-se com os vivos? Esta vida são dois dias. Esperem até depois de amanhã; deixem-lhe fechar o ôlho e saltem-lhe em cima.
Por êste modo a vítima não sofre as dores da operação, a sociedade desafronta-se e a moral jubila.
Está a ironia Ramalhal inteiramente conforme ao duelo contra Antero, em que, sacrificando as próprias sintonias de ideário, não pôde pactuar com ataque a Velho cego e doente, que, tal como os Finados, neste Mundo não tinha armas equiparaveis com que se defender. Uma razão que me leva a atacar Chávez e não já Fidel. É nesta Escola de comportamento que me filio.

6 comentários:

T disse...

O que desgosto na Ana Gomes, sobeja-me em gosto pelo Ramalho.
Infelizmente andamos em vivências sociais muito afrontadas...
Bj

O Réprobo disse...

Era muito boa a Ramalhal Figura! Mas as pessoas devem ter o domínio suficiente de si para distinguir o óbvio - que há horas para tudo.
Bjinho

Capitão-Mor disse...

Não se acanhe! Solte essa língua viperina...

O Réprobo disse...

Não gosto de bater em mortos e "prontos"!
Abraço

Bic Laranja disse...

Muito bem! Apoiado!
Cumpts.

O Réprobo disse...

Meu Caro Bic Laranja,
sempre me irritou a ausência de contenção diante do passamento. Assim como lamento, embora considere natural nessa gente, aqueles que, anos depois, se regozijam com o momento do fim terreno. Um pouco o que alguns pretensiosos fizeram com a cadeira de Salazar, ainda recentemente, num programita que serve para os quatro opinadores e o patrão que conduz se confortarem no reconhecimento mútuo e pouco partilhado.
Espero nunca exteriorizar, ou sequer sentir, contentamento com uma morte de governante.
Abraço