quarta-feira, 4 de junho de 2008

Tormentos da Escrita

A Árvore Livro de DaliNão concordo com o que Mário Cláudio diz, ou seja, que Quem escreve mal pensa mal. Escrever é uma técnica, mesmo nos casos em que, como dizem de Dostoievski, a inquirição das lutas interiores leva a melhor sobre a relativa imperfeição formal. Conheço muito boa gente capaz de um pensar profundo, sem capacidade de articulá-lo, por escrito. Já a inversa me parece menos problemática, pois pensar mal já implica escrever mal, na medida que uma produção bonitinha a que falte uma base de exercício psíquico que conte não despertará interesse de maior por entre os gostos mais treinados.
Já a imagem da Senhora que escreve por ociosidade ou inclinação exclusivamente pessoal e tranquila me parece falhada para ilustrar a escrita desaconselhável. Não é por um mundo ser visto ou sentido com lentes cor de rosa que é artisticamente mau, tudo dependerá do condimento espiritual e espirituoso de que venha a ser impregnado. E tanto pode ser uma nulidade redigida o produto de uma Mulher feliz como o de uma atormentada, tal o relato contentinho de um homem que se admira, ou a veraz conta dos turbilhões mentais de um rapaz que pense ser o simples facto de se descobrir sentindo uma recomendação para publicar. Plath e Espanca não foram grandes poetisas por infelicidades revolventes, vieram a sê-lo pela força artística em que conseguiram expressar-se. E nos casos menos revoltos há um pormenor que torna ainda mais despropositada a figura de estilo do Escritor Portuense: as Mulheres, com talento ou não, possuem uma certa tendência para procurar agradar, ou, ao menos, a melancolia de o não conseguirem; nos homens, ausente este tempero, nota-se mais a arrogância, que, se perdoável e até estimada nos casos de génio, é fatal nas manifestações mais chãs.
Senhora Escrevendo de Vermeer

15 comentários:

fugidia disse...

Bom dia, querido Rép. ;-)

Bom post: concordo com o que diz.
E, para mim, o encantamento da net é precisamente descobrir tanta gente que escreve tão bem, com conteúdo.
Um beijinho grande :-)

O Réprobo disse...

Oi, Fugi Mia. Partilho desse encanto sentido, adicionado à papinha feita que é termos essas belas prosas ao alcance de um clic, embora lastime que algumas delas não sejam recolhidas na dignidadde que um livro confere.
Beijinho

CPrice disse...

“escrever é uma necessidade .. única altura do tempo em que me encontro comigo .. e faço algo para mim” .. lida há uns tempos largos, esta frase de um conhecido escritor, que admiro, da nossa praça .. fiquei a pensar nela, no que para mim significa, no que faço aqui escrevendo, por vezes coisas menos, menos .. outras vezes umas que até eu aprecio .. e penso .. “escrever é uma necessidade?” sem dúvida.

explicação singela caro Paulo, muito mais simplista que as brilhantes considerações com que nos brinda hoje.

cristina ribeiro disse...

Concordo plenamente com o Paulo quando refere não ser verdadeira essa correlação. Disso são tantos os casos conhecidos...
Mas felizes são os que bem pensam e bem escrevem; basta vir ao «Afinidades» para se ter de tal um exemplo.
Bom, as always.
Beijo

cristina ribeiro disse...

E volto atrás para dizer que gosto das pinturas: Vermeer todas , Dali não de todas, mas algumas, entre as quais esta...

ana v. disse...

Com sempre, sim. O Afinidades é um excelente exemplo de boa escrita, com conteúdo e forma. Masculina, no caso, mas também podia ser feminina: eu não distingo, com essa sofreguidão do Mário Cláudio, a qualidade de escrita pelo sexo, e acho puro preconceito o que ele diz sobre a escrita ociosa das mulheres. Não falta por aí péssima escrita masculina, publicada em grandes editoras e divulgada com pompa e circunstância. Há de tudo, bom e mau. Concordo que há muito "mau", mas não é um exclusivo das mulheres.
Beijo, Paulo.

Anónimo disse...

Neste caso, Caro Réprobo, o que posso dizer é: bem pensado, bem escrito.
Um abraço.

O Réprobo disse...

Singela, Querida Once? Com a simplicidade irradiante da clareza de percepção que dispensa palavrório a mais, isso sim. Claro que se deve respeitar a escrita como resultante de um imperativo interior. Quer isso dizer que basta como critério de apreciação? Claro que não, ninguém disse uma coisa dessas. Por isso acho que, no extremo oposto, M. Cláudio errou, ao dar como paradigma o caso da Mulher que escreve por aqueles motivos. Daí pode resultar a Excelência como a infelicidade, com tudo o que haja pelo meio.
Beijinho

O Réprobo disse...

Ai, Querida Madrinha Cristina, sempre Magnânima ao louvar o afilhado! Ná, não sou exemplo de coisa aproveitável. Mas há-os com fartura e a entrevista, ao ignorá-los, pareceu-me entrincheirar-se num núcleo de consagrados que desconfia da proliferação emergente de outros focos criativos.
Beijo

O Réprobo disse...

Querida Ana,
as Meninas , hoje, querem deixar-me todo coradito, heim?
É estranho este ataque e interrogo-me se a desconsiderção sexista em que incorre não se ficará inconscientemente a dever ao facto de a Escrita não ter sido um domínio em que, historicamente, hajam sido impostas barreiras especiais ao exercício feminino. Germinaria assim naquelas cabeças exclusivistas a ideia luminosa de que um plano criativo a que se acede sem luta merece desprezo e, por arrastaento, que só pode gerar fancaria literária.
Beijinho

O Réprobo disse...

Outro, Meu Caro Mike. É bom saber que Alguém não nos acha amputados de uma das vertentes da confecção textual...
Abraço

cristina ribeiro disse...

Paulo, já uma vez lhe disse que, quando se é bom a fazer uma coisa, disso termos consciência só pode mesmo ser virtude. A modéstia em demasia é pecado: ou não acredita na capacidade dos seus leitores para avaliarem de uma escrita de qualidade quando a encontram?
"Não sou exemplo de coisa aproveitável"- como cá dizemos: "o Senhor até o pode castigar"...

Beijo cheio de admiração

O Réprobo disse...

Não, Cristina, a Verdade é que promove os que a procuram, mesmo que com pouco jeito, como eu.
Beijo grato

Luísa A. disse...

Meu caro Réprobo, concordo consigo, que é o pensar mal que implica o escrever mal, não o contrário. Mas suspeito – a Ana que me perdoe – que o não pensar nada já não implica coisa nenhuma, porque se faz excelente poesia de mera sensibilidade. Será?... ;-D
P.S.: E é verdade que admiro a notável articulação da sua escrita, meu caro Réprobo, sempre bem pontuada de umas deliciosas farpas e notas de humor. Gosto muito.

O Réprobo disse...

Obrigado, Querida Luísa, é mais do que recíproca a admiração, pois na Sua vejo uma notabilíssima combinação de afirmativa criatividade com uma contenção tão sabiamente enformante que, para além de um estilo cuidado, revela uma omnipresença do Gosto Refinado, a qual, ao contrário do que sucede a outros (hélas), nunca descamba.

E sim, pode-se criar sem esgotar racionalisticamente um assunto. Mas senti-lo e, assim decantado, dá-lo à estampa, não será uma forma de pensá-lo?
Beijinho