terça-feira, 3 de junho de 2008

Lâmpadas no Nevoeiro

As conversas são como as cerejas, sabe-se bem. Mencionou a Luísa as inexactidões tormentosas que descobrira num livro que vampirizava o culto de Florence Nightingale, The Lady With The Lamp, o que me fez pensar em como a abnegação dela mudou o prestígio das Enfermeiras no teatro de Guerra. Até aí essa Nobilíssima Profissão era muito conceituada, nos estabelecimentos de assistência civis, na longa tradição de serem prodigalizados os cuidados de saúde por Irmãs de Caridade, ou Senhoras dedicadas. Já as que tratavam os soldados eram alvo do maior desprezo, visto que as troop ou camp followers, como se conheceram no mundo anglo-saxónico, eram pouquíssimo qualificadas, sendo o tratamento dos feridos um dos vários serviços que ofereciam, a par da venda de produtos alimentares, consertos e lavagens de vestuário, bem como comércios carnais pagos. Só com a devoção altruísta do mais belo dos Rouxinóis, na Guerra da Crimeia, num impulso semelhante ao que fez Dunant criar a Cruz Vermelha, após Solferino, é que se passou a reconhecer o tributo devido a quem tanto se sacrificava para diminuir os calvários alheios.

Do hábito antigo nos campos de batalha ficou a hoje esquecida imputação do desastre de Alcácer-Quibir, por Ângelo Paciuchelli, à sensualidade, para cujo pasto levavam os portugueses outro exército de ruins mulheres.
Indignou-se perante este relacionamento proto-puritano o afamado Padre Manuel Bernardes, que resgata as culpas nacionais com recurso a Santa Teresa de Ávila, indício da não-condenação Divina:
Depois que Deus, Nosso Senhor, para me consolar da pena que tive com a perda do exército português nos campos africanos, me disse que a permitira, por achar aos Portugueses dispostos para os levar para Si, fiquei com tão grande estimação daquela nação, na qual até os soldados, estragados nas outras, estavam tão bem dispostos, que me sobrevieram grandes desejos de ir fundar algumas casas do nosso Carmelo reformado naquele reino, (...)
E, dia da assunção da Rainha dos anjos, me disse o senhor:
«-Tu, filha, não irás a Portugal fundar casas da tua reforma; mas irão as tuas filhas e filhos, porque quero, aumentando o número dos bons religiosos que há naquele reino com os teus, que cresça o motivo de eu suspender o castigo que lhes dei e usar de misericórdia com ele. Também será levada a tua mão esquerda, que lhe quero dar a mão de uma amada esposa, para o levantar da miséria em que estará caído e restituí-lo às felicidades antigas e dar-lhe um penhor de outras avantajadas.»
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Tarda a passar a fase do castigo, mas com coisas pública e privada como as que vamos tendo seremos dignos do alívio prometido?

7 comentários:

cristina ribeiro disse...

Pois tarda. Mas acho que as razões são bem terrenas...

Esse preconceito relativamente à presença da mulher, trazia azar diziam, levou muitas mulheres a tentarem passar por homens, nomeadamente no mar; não recordo as razões da personagem encarnada por Barbra Streisand no «Yentl», mas, por certo, havia de ser o mesmo tipo de "bruxedo"...
Beijo

Irene Ermida disse...

Essa questão terá respostas num amplo contexto em que tudo acaba por ter justificação. Cabe ao cidadão relembrar as «promessas» feitas e exigir a prestação dos serviços adequados. (será?)

O Réprobo disse...

É verdade, Querida Cristina, que o travestismo da Mulher em roupagens masculinas veio a ser assimilado à bruxaria e foi mesmo a causa eficiente da condenação de Joana D´Arc, que abjurara segundo os desejos dos captores, mas voltara a envergar vestes másculas depois de proibida, por terem sido as únicas deixadas no cárcere ao seu dispor.
Beijo

O Réprobo disse...

Querida Irene,
pois pegando nessa deixa, a de transformar os governados em condicionante dos governantes, projectamos a responsabilidade num recíproco dever, capaz de reafirmar que cada povo tem o governo que merece. O que, em última análise, nos reconduz à questão enunciada...
Beijinho

Luísa A. disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Luísa A. disse...

Meu caro Réprobo, as conversas são, de facto, como as cerejas. É um dos passos impressionantes da História essa Guerra da Crimeia e as terríveis condições de assistência aos seus feridos, começando pela elementar higiene. Circunstâncias que agigantam ou dão a dimensão heróica ao esforço altruísta da «Lady with the Lamp», uma senhora educada e delicada, que surpreende que tenha resistido ao que decerto viu. Fiquei com muito interesse em aprofundar a figura (uma personalidade estranha, um tanto contraditória e depressiva, ao que parece) e a sua época.

O Réprobo disse...

Tenho para aí duas biogradias Dela, Querida Luísa. Vem comprovar um velho preconceito que nutro, o de que as Senhoras são muito mais vocacionadas do que nós, mariquinhas que às vezes somos, quer em suportar a dor, quer em prestar aos que sofrem a atenção que é o melhor dos lenitivos.
O exemplo frutificou de tal forma que, durante a Primeira Guerra Mundial, até a Rainha da Bélgica actuou como Enfermeira de Soldados.
Beijinho