quinta-feira, 22 de maio de 2008

Eu Diria Mesmo Mais,...

No dia de aniversário de Hergé que melhor forma de homenageá-lo do que ler-lhe a biografia... em Banda Desenhada? Não tem esta obra génio, ao contrário da do seu Objecto, mas nem isso era pedido. Com saltos temporais inimigos da minúcia, próprios desta Arte, vive muito do ponto forte de sugerir as inspirações das personagens em pessoas que se cruzaram com o Autor de Tintin: Bob de Moor para Haddock, o pai e o tio para os Dupontd, uma frequentação musical do ciclo de conhecimentos materno para a ária preferida da Castafiore...
Desde Pol Vandromme que nos tinha sido enraizada a noção de o universo tintiniano, com o ressurgimento de personagens secundárias ao longo dos diversos albuns, configurar uma sociedade paralela, ao jeito de «A Comédia Humana» de Balzac. Não há pois grande enriquecimento a constatar com o entrecruzamento de pessoas reais, que aumentassem por uma espécie de clef dum qualquer roman a complexidade que lhes é própria e intransmissível.

Até porque não é na absoluta imanência que reside apenas o gigantismo cultural desta criação, mas também na capacidade de fazer-nos regressar a constantes da herança espiritual do Ocidente, na parelha de heróis em que desembocou a fase mais adulta da obra.

Porque ninguém me tira da cabeça que Tintim é partícipe dos traços de Ulisses, utilizando a esperteza e o ocasional engenho enganador dos maus para um bom fim, enquanto que Haddock cita Aquiles, não só na ira hiperbólica, mas igualmente na Lealdade e na disponibilidade para a luta em terreno aberto, como na fidelidade ao Amigo, Pátroclo entre os Helenos, como, para o efeito, o Dono do Milu, nos nossos dias.

Por isso os Gregos desconfiavam de Ulisses e idolatravam Aquiles, enquanto a nossa época tende a subalternizar este, admirando o ardiloso. Sinal dos tempos e da decadência do Escrúpulo e da Espontaneidade no conceito dos Povos, o próprio ferrete do Declínio.

E creio que a porventura abusiva assimilação proposta não será enjeitável modalidade de libertar Georges Rémy do aprisionamento em que o seu talento o confinou, apenas superficialmente fracassado no salto que pretendeu para a Pintura. Sem o saber, pintava, já.

16 comentários:

ana v. disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
ana v. disse...

Curiosíssima esta análise, Paulo: o paralelismo das personagens de Hergé com os heróis da antiguidade clássica é brilhante. Nunca teria pensado nisso e nunca ouvi antes uma analogia parecida sobre este tema. Fantástico post, como sempre.

(Só um minúsculo reparo: Milu é uma cadela, e não um cão. Sabia?)
Beijinho

fugidia disse...

Fora o justo reparo da nossa Ana (risos), está um belíssimo post, querido repr.
Gostei muito de o ler :-)

Bj.

O Réprobo disse...

Essa agora, Querida Ana, todas as minhas fontes o dão como macho, apesar do nome! Onde descobriu essa tanssexualidade do bicho, se nos reportarmos à minha incorrecta representação?
Beijinho, grato pelo juízo restante

O Réprobo disse...

Ainda bem, Querida Fugidia. Saberá que ando há anos a tentar escrever um tratado de Ética intitulado »Haddock Como Exemplo», em que este e muitos mais aspectos são desenvolvidos?
Beijinho

cristina ribeiro disse...

Volto já; agora vim só dizer-lhe que tem um desafio, lá em casa.
Beijp

ana v. disse...

Paulo, leia qualquer livro do Tim Tim no original e verá que tenho razão. Aliás, quem chamaria Milú a um cão macho? Isso é que seria considerá-lo transsexual...

cristina ribeiro disse...

Ao ler o seu texto, Paulo, retive a ideia que depois vim encontrar aqui firmada pela Ana: genial essa associação de caracteres Hergenianos à de dois heróis gregos, cantados pelo também genial Homero. Dá gosto ler, e pensar que assim é.
Beijo

Anónimo disse...

Cara Ana V.:

O cão Milu é realmente um cão (não é Milú). O nome advém do fox-terrier de Adolfo Hitler, quando este era cabo durante a I Guerra Mundial. O nome foi inspirado em Milo de Crotón, o maior dos atletas gregos, do século VI A.C. Uma escolha irónica para um pequeno cão. E o verdadeiro inspirador da figura de Tintin era o (mais tarde coronel e depois general das SS) Léon Degrelle, antigo jornalista que investigava casos de corrupção e fraude na Bélgica da década de 1930, e que mais tarde foi - creio eu - co-fundador do Partido Rexista.

Léon Degrelle era amigo de Hergé, e conseguiu que este continuasse a publicar mesmo durante a ocupação alemã (o que lhe viria a causar grandes problemas depois da guerra).

Isto é verdade, Cara Ana, e acho que em nada vai denegrir o génio de Georges Rémy, concordemos ou não com as suas amizades da época.

Quanto a mudar o sexo ao maior e mais atlético dos atletas gregos...

Beijinho.

E um abraço ao Caríssimo Paulo.

O Réprobo disse...

Querida Ana,
já li e tenho ideia de que o dono se lhe dirige sempre como son... qualquer coisa.
Beijinho

O Réprobo disse...

Obrigado, Querida Cristina,
penso os Heróis sagrados dos Helenos e os da BD fabulosa como mais do que são, em si mesmo considerados - verdadeiras categorias mentais a pedir pesonificação que atravessam toda a vida mental do Ocidente.
Beijo

O Réprobo disse...

Meu Caro Carlos Portugal,
já que do Milu se trata, houve a intermediação física de um fox-terrier que a famíia do próprio Hergé teve a que deu o nome... Rex. Mas foi antes do partido.

Degrelle sempre reivindicou ser o inspirador da figura, mas Rémy, mesmo quando isso o podia beneficiar, nunca concedeu tal, dizendo sempre ter sido o irmão a fonte a que fora beber. E, apesar de amigo dele, nunca foi Rexista, a única militância vaga que teve foi no grupo do Abade Wallez.
Abraço

Anónimo disse...

Correcto, Caríssimo Amigo. Mas é curiosíssima essa intermediação canina. Desconhecia-a.

Grande abraço.

O Réprobo disse...

É verdade, Meu Caro Carlos, nem de todos os REXes reza a História...
Abraço

ana v. disse...

Caro Carlos Portugal, estou esmagada com tanta erudição e sabedoria TinTiniana! Não ouso contrariá-lo, claro, mas confesso que ainda não estou completamente convencida sobre o sexo do bicho. Vou investigar e darei a mão à palmatória, com muito gosto, caso as minhas pesquisas vos venham a dar razão.

Entretanto, não contesto a história que está por detrás da criação da personagem, mas apenas o seu sexo. E sei que é Milu e não Milú (o acento está a mais e não faz sentido), o que não significa que não possa ser um nome feminino.

Obrigada pelo esclarecimento precioso.

O Réprobo disse...

Querida Ana, só uma achega, se reparar, o bicho age retintamente (tanto quanto se pode dizê-lo de um cão branco)como macho.
Beijinho