Eu Diria Mesmo Mais,...
Desde Pol Vandromme que nos tinha sido enraizada a noção de o universo tintiniano, com o ressurgimento de personagens secundárias ao longo dos diversos albuns, configurar uma sociedade paralela, ao jeito de «A Comédia Humana» de Balzac. Não há pois grande enriquecimento a constatar com o entrecruzamento de pessoas reais, que aumentassem por uma espécie de clef dum qualquer roman a complexidade que lhes é própria e intransmissível.
Até porque não é na absoluta imanência que reside apenas o gigantismo cultural desta criação, mas também na capacidade de fazer-nos regressar a constantes da herança espiritual do Ocidente, na parelha de heróis em que desembocou a fase mais adulta da obra.
Porque ninguém me tira da cabeça que Tintim é partícipe dos traços de Ulisses, utilizando a esperteza e o ocasional engenho enganador dos maus para um bom fim, enquanto que Haddock cita Aquiles, não só na ira hiperbólica, mas igualmente na Lealdade e na disponibilidade para a luta em terreno aberto, como na fidelidade ao Amigo, Pátroclo entre os Helenos, como, para o efeito, o Dono do Milu, nos nossos dias.
Por isso os Gregos desconfiavam de Ulisses e idolatravam Aquiles, enquanto a nossa época tende a subalternizar este, admirando o ardiloso. Sinal dos tempos e da decadência do Escrúpulo e da Espontaneidade no conceito dos Povos, o próprio ferrete do Declínio.
16 comentários:
Curiosíssima esta análise, Paulo: o paralelismo das personagens de Hergé com os heróis da antiguidade clássica é brilhante. Nunca teria pensado nisso e nunca ouvi antes uma analogia parecida sobre este tema. Fantástico post, como sempre.
(Só um minúsculo reparo: Milu é uma cadela, e não um cão. Sabia?)
Beijinho
Fora o justo reparo da nossa Ana (risos), está um belíssimo post, querido repr.
Gostei muito de o ler :-)
Bj.
Essa agora, Querida Ana, todas as minhas fontes o dão como macho, apesar do nome! Onde descobriu essa tanssexualidade do bicho, se nos reportarmos à minha incorrecta representação?
Beijinho, grato pelo juízo restante
Ainda bem, Querida Fugidia. Saberá que ando há anos a tentar escrever um tratado de Ética intitulado »Haddock Como Exemplo», em que este e muitos mais aspectos são desenvolvidos?
Beijinho
Volto já; agora vim só dizer-lhe que tem um desafio, lá em casa.
Beijp
Paulo, leia qualquer livro do Tim Tim no original e verá que tenho razão. Aliás, quem chamaria Milú a um cão macho? Isso é que seria considerá-lo transsexual...
Ao ler o seu texto, Paulo, retive a ideia que depois vim encontrar aqui firmada pela Ana: genial essa associação de caracteres Hergenianos à de dois heróis gregos, cantados pelo também genial Homero. Dá gosto ler, e pensar que assim é.
Beijo
Cara Ana V.:
O cão Milu é realmente um cão (não é Milú). O nome advém do fox-terrier de Adolfo Hitler, quando este era cabo durante a I Guerra Mundial. O nome foi inspirado em Milo de Crotón, o maior dos atletas gregos, do século VI A.C. Uma escolha irónica para um pequeno cão. E o verdadeiro inspirador da figura de Tintin era o (mais tarde coronel e depois general das SS) Léon Degrelle, antigo jornalista que investigava casos de corrupção e fraude na Bélgica da década de 1930, e que mais tarde foi - creio eu - co-fundador do Partido Rexista.
Léon Degrelle era amigo de Hergé, e conseguiu que este continuasse a publicar mesmo durante a ocupação alemã (o que lhe viria a causar grandes problemas depois da guerra).
Isto é verdade, Cara Ana, e acho que em nada vai denegrir o génio de Georges Rémy, concordemos ou não com as suas amizades da época.
Quanto a mudar o sexo ao maior e mais atlético dos atletas gregos...
Beijinho.
E um abraço ao Caríssimo Paulo.
Querida Ana,
já li e tenho ideia de que o dono se lhe dirige sempre como son... qualquer coisa.
Beijinho
Obrigado, Querida Cristina,
penso os Heróis sagrados dos Helenos e os da BD fabulosa como mais do que são, em si mesmo considerados - verdadeiras categorias mentais a pedir pesonificação que atravessam toda a vida mental do Ocidente.
Beijo
Meu Caro Carlos Portugal,
já que do Milu se trata, houve a intermediação física de um fox-terrier que a famíia do próprio Hergé teve a que deu o nome... Rex. Mas foi antes do partido.
Degrelle sempre reivindicou ser o inspirador da figura, mas Rémy, mesmo quando isso o podia beneficiar, nunca concedeu tal, dizendo sempre ter sido o irmão a fonte a que fora beber. E, apesar de amigo dele, nunca foi Rexista, a única militância vaga que teve foi no grupo do Abade Wallez.
Abraço
Correcto, Caríssimo Amigo. Mas é curiosíssima essa intermediação canina. Desconhecia-a.
Grande abraço.
É verdade, Meu Caro Carlos, nem de todos os REXes reza a História...
Abraço
Caro Carlos Portugal, estou esmagada com tanta erudição e sabedoria TinTiniana! Não ouso contrariá-lo, claro, mas confesso que ainda não estou completamente convencida sobre o sexo do bicho. Vou investigar e darei a mão à palmatória, com muito gosto, caso as minhas pesquisas vos venham a dar razão.
Entretanto, não contesto a história que está por detrás da criação da personagem, mas apenas o seu sexo. E sei que é Milu e não Milú (o acento está a mais e não faz sentido), o que não significa que não possa ser um nome feminino.
Obrigada pelo esclarecimento precioso.
Querida Ana, só uma achega, se reparar, o bicho age retintamente (tanto quanto se pode dizê-lo de um cão branco)como macho.
Beijinho
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