sábado, 31 de maio de 2008

Sem Curas de Trazer Por Casa

O Vendedor de Tisanas, por DunkerA situação que percorro levou-me a meditar sobre a incontestável sabedoria popular do dizer Cautelas e caldos de galinha nunca fizeram mal a ninguém. Aplicada ao caso, serve tanto para legitimar a assistência domesticamente prodigalizada, como o recurso à especialização profissional. Há sempre um elemento de dúvida, neste domínio, o de pecarmos por excesso, ou por defeito; mobilizar respostas desproporcionadas, correndo o risco de ceder a alarmismos da vizinhança da hipocondria por procuração, ou repousar sobre impressões de leigos, apesar de nossas. Tenho para mim que é sempre quando o optimismo triunfa que fica concedida a margem para ele ser desmantido. E por isso vou pelas cautelas, que não são de penhor, a não ser o do reconhecimento da beleza e semi-transcendência do acto de curar.
Como escreveu, em versos de poesia discutível, mas esperança justificativa, Eugénio de Carvalho Júnior, dedicando-os a um recém-chegado à Medicina, que se acabara de formar,

SER MÉDICO

Hoje deixas a vida de estudante
Para seguir a tua carreira amada.
Já vai ficando longe, bem distante,
A vida que levavas, descuidada.

Feliz por ver-te alegre, triunfante,
Teu mestre, que seguiu tua escalada,
Vem te dar um conselho neste instante
Em que inicias, firme, outra jornada:

Ser médico é ser bom! Sem ser perfeito
Há de trazer um coração no peito
Sensível «como bússola da dor»!

Ser médico é ter sempre um lenitivo,
Uma palavra amiga, um incentivo,
Uma mentira... se preciso fôr!

11 comentários:

ana v. disse...

"Uma mentira... se preciso fôr!"
É uma atitude que está completamente em desuso mas que eu subscrevo em alguns casos. A velha escola era mais humanitária, sem dúvida.
Ainda bem que não aconteceu nada de muito cuidado com a sua mãe.
Um beijinho

O Réprobo disse...

Assim o espero, Querida Ana.
Quanto à problemática, é a do velho dilema da permeabilidade do técico à Compaixão. Que tenha sido revogada por desuso, como nos diz, é sinal dos tristes tempos. Mas honra ao Mérito das Excepções.
Beijinho

Anónimo disse...

"A velha escola era mais humanitária, sem dúvida."

Infelizmente, isso é cada vez mais verdade, cara Ana. Os médicos estão a deixar de ser Médicos para se transformarem em "Técnicos de Saúde...

Eu ainda recordo (que saudade!) a extraordinária personalidade do meu Avô paterno, que recusou um lugar na Faculdade de Medicina do Porto, a fim de se dedicar às pessoas da sua aldeia de Castanheiro do Norte, em Carrazeda de Ansiães...

Cristina Ribeiro disse...

Mas, felizmente, TSantos ainda temos alguns motivos que nos fazem pensar que essa " velha escola" ainda persiste aqui e acolá; conheço alguns casos em que a vocação para minorar o sofrimento dos que padecem de males físicos ainda prevalece: aqui no hospital local, por exemplo, tive conhecimento, através de uma irmã que recorreu aos seus serviços, de um médico a quem a esposa telefonou várias vezes durante a consulta, dizendo-lhe que já há muito deveria ter jantado, mas ele dizia-lhe que não podia ir sem atender os pacientes que esperavam porque alguns eram de longe- já passava muito da meia-noite.

Luísa A. disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Luísa A. disse...

O segredo está, como em quase tudo, na existência de uma real vocação. Infelizmente, os médicos de hoje parecem não ser completamente imunes à contaminação do espírito do funcionalismo. Mas há, na nova escola, uma perspectiva de prevalência do combate à dor que me agrada. A velha escola entendia que a dor era inerente às doenças e ao seu tratamento, o que alimentava a ideia de que os médicos eram piores do que elas - uma ideia que ainda não erradiquei do meu espírito… Gosto deste seu «post» também pelo sinal que dá, meu caro Réprobo. :-)

ana v. disse...

Concordo consigo, Luísa. A nova escola tem as suas vantagens também, e a forma de encarar a dor (deixando de considerá-la uma fatalidade inerente à doença) é sem dúvida uma delas. Eu referia-me mais à maneira de dar as más notícias, na qual não vejo hoje em dia grandes cuidados. E nem sempre vale a pena ou é aconselhável ser-se nu e cru, por muito amor à verdade que se tenha.

Caro TSantos, a minha mãe também era médica e fez opções parecidas com as do seu avô. Acrescia o facto de ser mulher e ter uma família a exigir-lhe mais atenção do que a que se pede a um homem. Mas ela soube bem distribuí-la por todos.

Anónimo disse...

Ainda vai havendo médicos da velha escola, sim, cara Cristina...felizmente!
Mas o que critico é esse "espírito de funcionalismo" que a Luísa refere, e que, infelizmente, é um dos males endémicos da nossa sociedade...

"Caro TSantos, a minha mãe também era médica e fez opções parecidas com as do seu avô. Acrescia o facto de ser mulher e ter uma família a exigir-lhe mais atenção do que a que se pede a um homem. Mas ela soube bem distribuí-la por todos."

Sei bem a que se refere, cara Ana, pois tenho uma tia que, talvez influenciada pelo Pai, seguiu o mesmo caminho, e teve os mesmos problemas que a sua mãe (e as mesmas soluções, aposto!)...

Quanto à maneira de dar as más notícias...bem, depende da pessoa a quem elas devem ser dadas. E aí, o facto do médico conhecer bem o doente pode ser uma vantagem.

O Réprobo disse...

Queridos Amigos,
estou encantado por o meu desabafo, mesmo que tentando conferir-se sentido trans-pessoal, haja despertado tão interessantes reflexões. Confesso que a parte do poema que a Ana, na dupla vertente de Poetisa e Filha de Médicos, elegeu estava algo informada por faltas de jeito evidentes, aquando do falecimento do meu Pai. E que o sentido profundo evidenciado pela Luísa era quase um ensaio de demiurgia para que, na provação em curso, o Real não virasse as costas ao Ideal.
A minha satisfação, desta feita, pode ser anunciada, embora a exigência da minha Mãe não tenha ficado aplacada.
Mas como diria o velho Pangloss, podia ter sido muito pior!
Obrigadíssimo a Todos e esperemos que a grande maioria dos Médicos não se deixe desumanizar

-JÚLIA MOURA LOPES- disse...

concordo convosco,ainda há médicos da velha escola, embora não haja tantos como gostariamos...

Estava a lembrar-me aqui que Josão de Araújo Correia, médico e escritor da Régua, no seu leito de morte, fazia consultas grátis aos pobres. Já não há gente desta cepa...

bem querer meu

O Réprobo disse...

Eu gosto bastante dos contos dele, Querida Júlia. A minha Mãe, então...
Mas desconhecia esse pormenor que é antes um pormaior.
Beijinho