Passaria hoje o aniversário daquele que considero o maior prosador do Século XX, Ernst Jünger, o qual levou a demanda da Liberdade a um ponto em que não só procurava furtar o Ser à tirania dos regimes e facções que movimentam e mobilizam as massas para combates longe dos do protagonismo aristocrático da Personalidade, mas também lhe tentava incutir a capacidade de se eximir às ordens do tempo rotineiro e contemporâneo. Daí que promovesse a significação das clepsidras e ampulhetas, por contarem um lapso temporal durante o qual se pretendia fazer alguma coisa; e rejeitasse os relógios, telefones e rádios, transmissores duma hora genérica e abstracta, a que se adstringia a obrigação de fazer alguma coisa. Como cantou uma solitude, não necessariamente associal, concretizada no refúgio florestal ou na observação e estudo sem as exigências formalistas da Escola.
Claro que o velho protestante - como se definia - visando resgatar a Individualidade das ameaças que de todos os lados impendiam sobre ela, teria de, nas suas palavras, ele que acreditava num Criador mas não era Cristão - chegar a um flirt com a Igreja Católica, por ser a única Instância actual que, consistentemente, preserva a dignidade, pela defesa do Livre Arbítrio. E, numa vida tão longa como a que o contemplou, de concluir pelo crescimento moral que a idade avançada permite.
Noutro 29 de Março, o de 1966, escreveu, diaristicamente:
Nas nossas experiências, nas nossas tarefas, nos nossos deveres, quantas recriminações! Recriminações: quer dizer que nós não demos a resposta esperada. Recriminações aos olhos dos pais, dos mestres, dos camaradas, dos amigos, também daqueles que encontrámos casualmente. Dislates ligeiros, inconveniências, pretensões, gafes, faltas de jeito, más acções.
Seja: está longe, tudo isso, a anos e décadas de distância, ou remonta mesmo aos nossos tempos infantis. As feridas que nos infligimos, a nós e aos outros, estão há muito cicatrizadas. E há muitas coisas que nos resta saber ainda. Os parceiros, os cúmplices, os interessados estão mortos desde há muito. E enquanto vivos já tiraram a sua vingança de nós, ou nos perdoaram. Mais ninguém sabe o que quer que seja.
Nós expiámos, mas as cicatrizes são sempre dolorosas e, por vezes, doem mais do que as feridas. Os males que sofremos esquecêmo-los, mas àqueles que cometemos, não lhes vemos o fim.
Como explicar estas investigações retardadas de camadas interiores de que a vida se retirou, essa inquietude que recusa o apaziguamento? Primeiro, pelo facto de que, desde logo, nós envelhecemos e o nosso discernimento moral se afinou. Mas então a recordação das nossas boas acções deveria desculpar-nos. Ora, nada disso se passa. Nós erramos através do nosso passado, como se o bem se tivesse emancipado, assim como que através de uma passagem de que não apercebessemos senão as irregularidades, as depressões e os abismos.
Ou seja, na Memória sem auto-complacência reside o fundamento do Digno, pressuposta a linearidade do Tempo.