Dor Onde Pára o Homem
Devido à predilecção cinéfila que me foi confiada por alguns Amigos Brasileiros e às reflexões que a Ana Vidal, a Cristina Ribeiro e a Fugidia expenderam nos comentários a poemas sobre a Saudade, dei comigo a repensar o «Blade Runner». Não só essa transferência do grotesco da clivagem relativa ao que nos caracteriza, que era a norma do olhar sobre os autómatos, desde Vaucasson, substituída pela possibilidade de encararmos a padronização hoje em dia imposta ao Homem, uniformizando a percepção do Passado e diminuindo a audibilidade da consideração do Futuro. Esta vida exclusivamente no Presente, sem sentimentos de herança e de receio, assemelha-nos estranhamente a essas máquinas de lutar, mas condenadas a não sentir emoções, até ao ponto de serem neutralizadas quando as começassem a experimentar.
O nó do problema estava em a inoculação de emoções do património de um qualquer ser, o aperfeiçoamento último que se lhes arranjou, não corresponder a dor ou êxtase vividos por eles. O que é muito diferente do generoso ideal de vivê-los com os outros, como da indispensável banalidade de sentir os próprios.
O resto acaba por ser o principal, a relação do eliminador de andróides com Rachel, ou seja, no assombroso cenário futurista, uma variação mais sobre a realidade de um amor impossível. O que a fita nos dá é o que todos e cada um procuramos no nosso afecto mais íntimo, ou seja alguém que faça de nós excepção à categoria em que a generalidade nos inclui. Quando a mais perfeita das criaturas artificiais se interroga sobre se é ou não um Replicant, já está imersa numa das muito humanas atitudes, a da dúvida. Mas o amargor que sentimos ao deixar a cadeira em que assistimos à película talvez deva ser indexado a uma outra percepção, mais indistinta: a de que as palavras finais de Rutger Hauer, o vilão possível, expressando a desistência no tempo - ou hora - de morrer, também traduz uma humaníssima atitude - a recusa em ficarmos sozinhos, neste mundo.
9 comentários:
Com este post lembrei-me logo, caro Réprobo, dos filmes "2001 e 2010 - Uma Odisseia no Espaço" (que muito me impressionaram: já lhe disse que o meu maior sonho era ser astronauta :-) ), em que o computador de bordo, o AL (salvo erro), acabou por ser desligado por causa das emoções que começou a querer sentir (e que, aliás, também recusou ficar sozinho)...
:-)
Cara Fugidia:
O computador era o Hal 9000, trocadilho com a sigla IBM (experimente substituir na sigla cada letra pela que lhe é precedente no alfabeto). Mas a sua análise está correcta. Bj.
Caríssimo Amigo:
Parabéns por mais este excelente postal. Quanto ao Blade Runner - um dos meus filmes de eleição - terei, se me permite, mais uma coisa a acrescentar: o facto do Blade Runner Deckard ser também ele próprio um andróide (assim como o polícia mestiço, com aspecto de latino-americano), com memórias implantadas (o sonho do unicórnio, por exemplo, cuja chave lhe é dada no final pelo minúsculo «origami» feito pelo colega «hispano».
O que coloca a questão, expressa - se não me engano - numa das versões extendidas do filme: «Aren't we all replicants of God?» Afinal, todos temos uma data de activação e uma data de expiração, sendo esta última uma das incógnitas que mais tem obcecado a humanidade.
Grande abraço.
É verdade, Querida Frugidia, também gosto muito do 2001, a sequência, do ponto de vista estritamente fílmico, penso-a menos conseguida. Sobre o paralelo que estabelece, não cessamos de projectar sobre as máquinas os pesadelos dos homens, ou não fossem, umas e outras, criação nossa...
Beijinho
Meu Caro Carlos Portugal,
essa é a questão fundamental, com efeito, mas penso que a história ainda ganha outra dimensão abstraindo dessa artificialidade originária, no momento em que Harrison Ford é convencido pelo chefe a voltar ao activo, pois estenderia a dependência até a entes dotados de livre arbítrio (uma vez polícia, sempre polícia). E por tornar mais trágica a relação com Rachel, em função das origens à primeira vista antitéticas...
Grande abraço
Tem toda a razão, caro Carlos Portugal.
Recordo-me até que no 2010 o nome dele estava meio apagado e só no fim é que os astronautas perceberam que era o "velho" Hal!
:-)
Sem ter directamente a ver com Blade Runner (um excelente filme, por sinal), mas não muito longe destas questões fundamentais, acabei de rever um outro filme que é um dos meus favoritos: "O talentoso Mr. Ripley". Ficou a martelar-me uma frase de que já não me lembrava, dita por Tom Ripley quase no fim do filme: "Toda a vida pensei que era preferível ser um falso alguém do que um verdadeiro ninguém". Isto dá que pensar sobre vivências, sonhos e dores "emprestados" de outros, não é?
Então não dá, Querida Ana? Mas existirá um "verdadeiro ninguém"? Ainda não dei por isso, mesmo naqueles que menos me ocuparam...
Beijinho
Creio também que não existe tal coisa, a não ser na insegurança e na infelicidade de quem assim se considera. E isso é que é dramático, ser o próprio o único a classificar-se de nulidade.
Lá está, Querida Ana,
outra modalidade do desespero que leva muito aflito a odiar-se e a desfazer no que toca ao próprio.
Beijinho. Penso que estes são os casos que verdadeiramente requerem ajuda psíquica.
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