sábado, 29 de março de 2008

O Tempo e a Luta

Passaria hoje o aniversário daquele que considero o maior prosador do Século XX, Ernst Jünger, o qual levou a demanda da Liberdade a um ponto em que não só procurava furtar o Ser à tirania dos regimes e facções que movimentam e mobilizam as massas para combates longe dos do protagonismo aristocrático da Personalidade, mas também lhe tentava incutir a capacidade de se eximir às ordens do tempo rotineiro e contemporâneo. Daí que promovesse a significação das clepsidras e ampulhetas, por contarem um lapso temporal durante o qual se pretendia fazer alguma coisa; e rejeitasse os relógios, telefones e rádios, transmissores duma hora genérica e abstracta, a que se adstringia a obrigação de fazer alguma coisa. Como cantou uma solitude, não necessariamente associal, concretizada no refúgio florestal ou na observação e estudo sem as exigências formalistas da Escola.
Claro que o velho protestante - como se definia - visando resgatar a Individualidade das ameaças que de todos os lados impendiam sobre ela, teria de, nas suas palavras, ele que acreditava num Criador mas não era Cristão - chegar a um flirt com a Igreja Católica, por ser a única Instância actual que, consistentemente, preserva a dignidade, pela defesa do Livre Arbítrio. E, numa vida tão longa como a que o contemplou, de concluir pelo crescimento moral que a idade avançada permite.
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Noutro 29 de Março, o de 1966, escreveu, diaristicamente:
Nas nossas experiências, nas nossas tarefas, nos nossos deveres, quantas recriminações! Recriminações: quer dizer que nós não demos a resposta esperada. Recriminações aos olhos dos pais, dos mestres, dos camaradas, dos amigos, também daqueles que encontrámos casualmente. Dislates ligeiros, inconveniências, pretensões, gafes, faltas de jeito, más acções.
Seja: está longe, tudo isso, a anos e décadas de distância, ou remonta mesmo aos nossos tempos infantis. As feridas que nos infligimos, a nós e aos outros, estão há muito cicatrizadas. E há muitas coisas que nos resta saber ainda. Os parceiros, os cúmplices, os interessados estão mortos desde há muito. E enquanto vivos já tiraram a sua vingança de nós, ou nos perdoaram. Mais ninguém sabe o que quer que seja.
Nós expiámos, mas as cicatrizes são sempre dolorosas e, por vezes, doem mais do que as feridas. Os males que sofremos esquecêmo-los, mas àqueles que cometemos, não lhes vemos o fim.
Como explicar estas investigações retardadas de camadas interiores de que a vida se retirou, essa inquietude que recusa o apaziguamento? Primeiro, pelo facto de que, desde logo, nós envelhecemos e o nosso discernimento moral se afinou. Mas então a recordação das nossas boas acções deveria desculpar-nos. Ora, nada disso se passa. Nós erramos através do nosso passado, como se o bem se tivesse emancipado, assim como que através de uma passagem de que não apercebessemos senão as irregularidades, as depressões e os abismos.
Ou seja, na Memória sem auto-complacência reside o fundamento do Digno, pressuposta a linearidade do Tempo.

8 comentários:

João Villalobos disse...

Muito bem lembrado.
Abraço e saudades

O Réprobo disse...

Olha, olha, Que Grande Honra, ainda hoje falei de Ti. Como bebi uns copos só disse bem!
Obrigado. Reciprocos, as nostalgias e o amplexo. Proíbe o Pedro Correia de ler este comentário.

cristina ribeiro disse...

Para não variar, um texto de eleição, que me deixou com um apetite enorme de conhecer a obra desse que considera "o maior prosador do século XX", de quem-parece ser grande o pecado- não conheço uma só linha.
Beijo

O Réprobo disse...

Mas vai conhecer. faça-me uma caridade, Cristina, confirme-me que lê bem o Francês e será meu grande prazer oferecer-Lhe o volume dos Diários de que retirei este passo.
Beijo, Querida Amiga

cristina ribeiro disse...

Meu amigo, acredita que, embora me sinta mais segura a falar o inglês, me é muito mais fácil ler bem o francês, sem ter de recorrer a dicionários como no caso daquele?
Mas, Paulo, não se dê a tal incómodo: a livraria que frequento, cá em Braga, encomenda-me os livros franceses que lhe pedir, porque está ligada, por via de uma das sócias, ao País do Bordéus (refiro-me ao vinho, claro :) ). Muito obrigada, mesmo!
Beijo

O Réprobo disse...

Incómodo nenhum, escusa é de Se incomodar com a encomenda deste. Está feito.
Beijo

ana v. disse...

Tem graça, comigo acontece exactamente o mesmo, Cristina. Acho que tem a ver com a prática mais frequente do inglês, hoje em dia. Mas também prefiro ler em francês.

:) Não estou a pedir-lhe livros, Paulo, por favor não interprete assim o que eu disse!!
Beijo

O Réprobo disse...

Querida Ana,
estou certo de que não, mas tenho convicção igual de que não faltará ocasião.

Comigo, a língua curricular foi o Inglês, mas a Cultura Francesa exerceu grande influência sobre mim, mesmo rindo dos defeitos que os próprios interessados também reconhecem.
Beijinho