segunda-feira, 24 de março de 2008

Liga Que Liga

O caso que fez as delícias noticiosas dos últimos dias tem sido levado para o âmbito da indisciplina escolar, quando, a meu ver, esse é o aspecto secundário da questão. O cerne do problema julgo que reside em os alunos não serem assim tão diferentes da Sociedade que os fez, não em serem excepções a ela. Com efeito, quantos de nós não temos sido massacrados por telemóveis a tocar, em almoços, cinemas, missas, concertos? Não são similares faltas de respeito? O traço mais original, cá para mim, assentou na fúria com que a rapariga defendeu o aparelhómetro, como se fosse o seu bem mais precioso, o que também se encadeia numa longa procissão de deificação da maquineta, desde as adolescentes que fazem strips para a INTERNET a troco de carregamentos do tm, até aos miúdos que pedem aos pais esse acessório como prenda de Natal, porque todos os outros o têm.
Vedar a entrada deste flagelo nas escolas poderia ser uma solução, paralela à das taxas moderadoras na Saúde, ambas tendentes a restringir urgências imaginadas, mas não oferecendo a do ensino os problemas de insensibilidade ao sofrimento em que a dissuasão hospitalar incorre. Mas é esforço condenado - um célebre Sheriff do Oeste Americano também obrigou os arribantes à sua cidade a entregarem-lhe as armas, no acto de entrada. Houve sempre alguém que introduzisse subrepticiamente uma, para ganhar vantagem. E quem poderá montar um serviço de revistas que imponha a disciplina correspondente no Farwest dos nossos estabelecimentos de ensino?

O próprio nome da coisa nasceu torto, em Português. Telemóvel não me parecia definir grande coisa, ao contrário de telégrafo, televisão e telefone, a escrita, a visão e o som ao longe, respectivamente. Agora, "móvel da distância"? Até que o sucedido me fez perceber o mobil da coisa - a função primordial deste tesourinho deprimente é mover a distância, transferido-a da física que atinge as relações de cada aluno, para a da matéria que é leccionada nas aulas.

10 comentários:

fugidia disse...

E o que teria feito o caro Réprobo, se fosse o professor?

P. S. Não gosto nada da "mocinha" da fotografia... Se eu pertencesse ao tal "simpático departamento", desconfiaria logo dela...
:-)

O Réprobo disse...

Querida Fugidia,
repare que, propositadamente, não canalizei a focagem para a atitude da professora, que considero compreensível, embora desajeitada.
Não fujo, contudo, à questão: teria, em vez de tentar a apreensão de propriedade alheia, para que um docente não tem mandado ou vocação, dito à prevaricadora que se retirasse da sala, com a decorrente participação disciplinar. Caso resistisse, sairia eu.
O mais irónico de tudo é a situação vir a ser apreciada com base em imagens... colhidas por outros telemóveis!
O tal cantinho da presença estatal que menciona também faz filmagens, mas não com essa muleta de papagaios.
Beijinho

Anónimo disse...

a questão da indisciplina escolar pode, de facto, ser secundária. Mas confesso-lhe que, ao ver aquelas imagens, não pude deixar de me perguntar: até onde é capaz de chegar a maldade humana?
Então, enquanto a tal rapariga estava a atacar a senhora de 60 e tal anos, os outros alunos, em vez de fazer alguma coisa para acalmar os ânimos, riam-se até mais não poder e incitavam a dita cuja a continuar.
Não é só uma questão de indisciplina. Isso é, efectivamente, secundário. O cerne da questão prende-se com os valores assumidos por aqueles jovens que assistiam a tudo, a meu ver, ainda piores do que a tal rapariga.
É esta a juventude que temos?
Eu como jovem que sou envergonho-me.
É triste e vergonhoso. Eu até posso compreender que, numa situação limite, alguém se descontrole e tenha atitudes irracionais dada a arbitrariedade e injustiças frequentemente cometidas pelos professores. Mas isto não se pode compreender. Refiro-me à atitude dos colegas da rapariga e não à dela.
Na minha opinião, foi não só uma falta de educação enorme (aspecto secundário), como também revelador da má índole daqueles jovens.
É mesmo uma vergonha. Fosse a professora o que fosse, e tivesse a aluna razão, perdeu-a toda.

O Réprobo disse...

Querida Magdalia,
mas concordo inteiramente. E é mais uma comprovação da tendência que o Homem tem para descambar, quando diluído no grupo. Não conheço alguém que seja pior, individualmente, do que integrado numa multidão, em momentos de crise, salvo se houver condicinamento pelo treino e pelo uniforme. Uns, por verem diluída a imputação de responsabilidades, assim sentindo solta a rédea para dar livre vazão aos impulsos malignos. A maioria, quero crer, por cobardia, não desejando prejudicar o enturmanço, ao arvorar-se como excepção à carneirada.
Beijinho

fugidia disse...

Concordo com a sua hipótese de atitude, caso fosse o docente.
:-)

ana v. disse...

Eu também concordo. Medir forças com uma adolescente mal educada e em estado de fúria (a defender, com a vida se fosse preciso, o seu bem mais precioso: um telemóvel!!) parece-me de uma insensatez que não é própria de um professor experiente. E esta professora não é uma novata. Enfim, não lhe tirando a razão, parece-me que deixou que a situação piorasse imenso e que a falta de respeito à sua pessoa aumentasse para níveis impensáveis. Falta de tacto, pelo menos.

O Réprobo disse...

Querida Fugidia,
ainda bem! Sinto-me reforçado na razão que penso assistir à opção que enunciei.
Beijinho

O Réprobo disse...

Querida Ana,
é precisamente a equuação desses dois pontos, o da revolta da aluna perante o confisco do "que mais lhe importava" e a indignação da docente perante um comportamento desconforme ao devido, mas infelizmente, generalizado ao ponto de propagar um sentimento laxista de desculpação, que me parece ter provocado a inadequação de resposta, no caso. É aliás reforçada esta minha percepção pelas declarações da professora, que se diz "enojada" - e não enjoada - de tanto ver as imagens reproduzidas.
Descer ao nível da disputa, numa turma com as características conhecidas naquela, era pôr-se a jeito para todo o vergonhoso gáudio que muito bem revoltou a Magdalia.
Beijinho

Luísa A. disse...

Meu caro Réprobo, também me arrepia a extraordinária importância que esse acessório ganhou nas nossas vidas. Admitia que, para além da sua utilidade no trabalho ou na resposta a urgências, pudesse servir, para muitos, como um meio de combater a solidão. Mas quando, em jantares de convívio, o vejo ocupar um lugar à mesa e prevalecer sobre a conversa, concluo que é um fenómeno que já transcende a minha capacidade de compreensão. Desconfio, aliás, se não será uma escapatória para a falta de conversa e de interesses…

O Réprobo disse...

Querida Luísa,
eu sou um irredutível gaulês, na recusa de alinhar por esse diapasão. Penso que hoje, mais do que a solidão, é a exibição do acompanhamento que sobreleva. Uma coisa que me faz impressão é ver muitos Amigos com dois tms, um "profissional" outro particular, à boa maneira dos pistoleiros. Outra é haver muito mais telemóveis do que pessoas, em Portugal. E uma terceira, o que me dizem várias das minhas amigas que me tentam convencer a usar um: quando eu respondo "mas então, imagina que estávamos aqui tão bem e a coisa tocava..."; resposta imediata - "AH, MAS QUANDO ESTÁS COMIGO, DESLIGAS!".
Está tudo dito.
Beijinho