Mas?
Findo o jantar, não me saía da cabeça a mais enigmática adversativa que conheço: William Morris, depois de tentar dar as feições da Mulher, Jane Burden, à Rainha Genebra, do ciclo da Távola Redonda, terá dolorosamente desistido, escrevendo na parte posterior da tela: Não consigo pintar-te, mas amo-te!
É este mas que eu contesto. Perceber-se-ia, se aplicado a uma impotência que recusasse a cosumação em acto da intensidade do sentimento nutrido. Agora, por não o satisfazer o resultado do retrato dela? Dir-me-ão que para um artista sensível, não conseguir dar seguimento ao sonho de contar a Amada entre as Musas é não pequeno sofrimento. E eu respondo que me parece todas as dificuldades entre eles terem nascido das profissões de ambos.
Não no sentido em que hoje é comum, com o cansaço a estimular a irritabilidade dentro do conúbio, ou com as exigências do trabalho a concorrerem com as prestações de cada casal. Antes porque penso que no respeitante à consorte, o métier morrisiano não era o de pintor ou designer, nem sequer escritor, que eram os que declarava na vida civil, sendo-o, ao invés, o de escultor. Com efeito, antes de casar com ela, moldou-a, qual nova Galateia, com o adestramento nas várias matérias da ascensão social, da Etiqueta à Literatura, dos idiomas estrangeiros ao piano. E com êxito.É este mas que eu contesto. Perceber-se-ia, se aplicado a uma impotência que recusasse a cosumação em acto da intensidade do sentimento nutrido. Agora, por não o satisfazer o resultado do retrato dela? Dir-me-ão que para um artista sensível, não conseguir dar seguimento ao sonho de contar a Amada entre as Musas é não pequeno sofrimento. E eu respondo que me parece todas as dificuldades entre eles terem nascido das profissões de ambos.
No que a ela toca, revelou-se profética a pintura na pele dessa Guinevere escapando do Himeneu com um íntimo do Marido, Dante Gabriel Rossetti, tal como a medieval caíra nos braços do melhor amigo do marido, Lancelote do Lago. E porquê? E para quê? Modelo que fora, para ser pintada e amada por ele, como efectivamente foi, parece que abundantemente.
Morris, se foi bem sucedido em criar uma nova mulher, revelou-se incapaz de satisfazer as vontades que nela semeara. São célebres as distracções de poeta que frustraram muitos pequenos projectos da vida em comum, como aquela em que procurou satisfazer-lhe o desejo de uma temporada termal em Baden-Baden, tomando caprichadamente todas as medidas necessárias, com a pequena excepção de fazer as reservas do hotel...
Mas ela não compreendeu - ou não quis compreender - aquilo em que coincidiram na percepção as Mulheres que li e As Que conheci: que um homem distrair-se em face Delas é sinal seguro de que o perturbam.
Estavam reunidos os condimentos para um Pigmaleão que não acabasse bem. Burden, apelido de solteira, significa tanto fardo como ónus. Qualquer dos sentidos era mau presságio.
12 comentários:
Antes do mais, Paulo, tenho de dizer que continuo a aprender muito por aqui...; nada sabia sobre as pessoas faladas no postal, mas achei a história tão apelativa que me fui inteirar.
Quanto ao cerne da questão, não me parece tão linear que essas distracções tenham sempre o mesmo significado: terá, talvez, no caso presente, mas conto-o como uma das excepções...
Beijo
Querida Cristina,
William Morris, como Ruskin, como Burne-Jones, os Rossetti e outros Pré-Rafaelitas são gente importante para mim. Lembra-Se, no Misantropo, de muitos quadros subordinados à estética do grupo?
Quanto ao segundo ponto, debatamos. Mas creio que estamos a partir de diferentes concepções de "distracção".
Beijo
Paulo, eu cheguei tarde à blogosfera, e conheci o "Misantropo" já numa fase tardia.
Quanto à distracção que tenho em mente, admito que seja mais terra-a-terra, prosaica por demasiado evidente e ostensiva.
Beijo
Caro Réprobo, dois pontos.
O primeiro: o "mas". Se ela se mostrasse desconsolada porque as suas feições não estavam bem retratadas, parece-me muito compreensível o "mas" dele que, ao fim ao cabo, não tem o significado menor que pode parecer à primeira vista.
O segundo: sinto-me mais do lado da Cristina Ribeiro, sobretudo tendo em conta o exemplo que deu: não me parece um bom exemplo para uma "distracção" reveladora de perturbação. Essas existem, claro, são muito divertidas e, sobretudo, deixam qualquer mulher encantada. Esta revela o que noto em muitos "artistas": fixam-se nos pormenores e o importante perde-se...
Dou-lhe um exemplo: ficar no aeroporto à espera, à chuva, quase duas horas, numa altura em que não havia telemóveis e quando tinha avisado e confirmado a hora de chegada, porque quem ficou de me ir buscar achou que eu ia delirar com a casa cheia de rosas, e esteve as duas horas a espalhá-las artisticamente pelas várias divisões...
Mais um beijinho (e volto para ler a sua resposta...) ;-)
Querida Cristina,
bem, o velho blogue ainda está lá. Se digitar na janelinha algum dos nomes que citei, verá que não aldrabei.
Claro que há distracções e distracções.
Beijo
Querida Fugidia,
mas aí está, essa era, mesmo que injustamente, passível de ser assimilada a desinteresse! Agora, o pobre do W. M., com tanto trabalho a comprar as roupas e bagagens neessárias, os bilhetes de barco e comboio, pôr as obrigações em dia para gozar as férias... não será impiedoso acusá-lo do mesmo?
Beijinho
Foi?
Hum... e teve muito trabalho e gastou muitas horas?
Hum... nesse caso não teria sido antes cansaço, em vez de perturbação???
:-D
Pois foi, Querida Fugidia...
Mas como esta houve outras. E se é verdade que ele trabalhava muito, a exaustão em estado permanente...
Beijinho
Meus queridos amigos, estou com o Paulo. As "distracções" são a minha própria pecha e acontecem-me frequentemente, sem que eu possa evitá-lo. E não significam, quase nunca, desinteresse ou indiferença. Sofro com isso, e por isso tenho que defender os meus pares da injustiça que nos fazem, ao considerá-las propositadas ou resultantes de negligência.
E, querida Fugidia, se alguém me fizesse esperar no aeroporto para me receber com a casa cheia de flores, eu perdoava-lhe tudo no mesmo instante, mesmo que estivesse encharcada! Talvez porque me veja a fazer a mesma coisa a alguém, com o maior gosto e empenhamento, e esquecendo-me completamente das horas...
beijos
Querida AV,
eu fiquei pior que ursa!
Deus dá nozes a quem não tem dentes, de facto!!!
Um beijinho para si.
:-)
Querida Ana,
Estou mesmo a ver William Morris sorrir lá de onde esteja, coisa que não era assim tão frequente na passagem dele por cá...
Beijinho
Querida Piursinha Fugidia,
não diga tanto, os dentes servem também para sorrir, não só para triturar. E a vantagem é que quem não os tenha pode conseguir o mesmo efeito rindo com os olhos, enquanto que se procurar comer apenas com eles está bem arranjado...
Beijinho
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