sábado, 19 de abril de 2008

Onirismo do Sétimo Dia

Os imperativos que permitimos condicionar a nossa acção sofrem tal desgaste da parte do mundo em que somos obrigados a mover-nos, que só para o território impreciso do sonhado podemos desterrar os fundamentos, a partir do instante em que constatamos a décalage melancólica entre a acção e o programa. Nesta alternância paradoxalmente nostálgica, porque marcada por uma simultaneidade espúria, da fidelidade e do obtido os Outros surgem-nos como selecção do nosso Tempo indexada às sensações, de forma a prejudicar a linearidade totalmente apreensível que, com a fatalidade a que não mais podemos fazer corresponder do que uma iconoclastia desvalida e morna, acabará por irremediavelmente nos subjugar. O Real é um gume duro, só incapaz de cortar o terreno imaterial dos princípios,mas desgraçadamente apto a retalhar as pautas por que se encareiraram as aplicações deles.
O Tempo Que Passa de Maryline GarbeDe Eduardo Soveral:

DECIFRAÇÃO DE UM QUALQUER SONHO

sou emissário de um rei desconhecido
cumprindo informes ordens vindas do além

e se julgam vãos
meus gestos sem sentido
e as bruscas frases que meus lábios vêem
é porque minha glória vem desse rei
cheio de não ter sido
pastor deste povo com quem lido
feito indistinto
anómalo de sentido
suado vitória humada
e de desdém

emissário sou
e emissário cumpro
sem disfarces
as ordens
amáveis
generosas
como música longínqua
como um mistério de mares

depois

depois
quando o vento acalmar
minha missão terei de esquecer
e meu orgulho
cego por não poder ver
mergulhar neste deserto de altas tradições
onde toda a gente sabe sempre onde tem de ir

para uns serei regresso
para outros serei porvir

talvez

mas só na sombra meus pés caminham
pois antes do tempo
espaço
vida e ser
de sonho nascem as minhas sensações

a paisagem longínqua só existe
para a hora em que o silêncio assiste
à intranquilidade do meu tacto
fluído num lembrar de asas
consciências
afectos
e rotas claras

esse renovar
a grande ogiva
o fim de tudo
é espaço
é tempo

se minha alma hoje beija o quadro que pintou
e a cor deste verão
é de pasmo apagado
serei de lucidez
até não me encontrar
serei abismo entre o que sou e o que serei
onde não haverá fora nem dentro

neste meu cansaço
esquecerei
meu nome
na estrada
deste silêncio em descida

e olhando como quem sorri
este silêncio com sem-nexo
despedaçado
longe do que hoje já não fui
serei horizontal
em vez de vertical

3 comentários:

cristina ribeiro disse...

Mas, Paulo,e são demasiadas as vezes em que podemos dizer "desgaraçadamente", é nesse Real, muitas vezes também muito agradável, que vivemos.
Nos momentos menos bons resta-nos refugiarmo-nos naquilo que de onírico podemos alcançar.
Beijo

O Réprobo disse...

Querida Cristina,
sem dúvida que o Real não é todo mau. O que nos faz sentir a inelutável queimadura é a desconformidade entre o fim que nos propusemos e a recepção que se obteve no espaço em que navegamos. Como a percepção da inevitabilidade e aproximação do outro fim, tendo ficado tão aquém...
Beijo

Anónimo disse...

"deste silêncio em descida"

...tristemente-belo.