domingo, 20 de abril de 2008

A Queda de um Anjo

O Médico e a Paciente de Jan Steen O relatório francês que demonstra ter havido um salto abrupto no número de agressões a médicos, sobretudo fora das áreas metropolitanas, parece vir ampliar o eco da agressão que neste país de brandos costumes se empreendeu contra uma equipa de emergência médica. Não está em causa a justeza da indignação de ver tardar o socorro de um familiar à beira da morte. O que é curioso é verificar que nas comunidades em que os clínicos mais prestígio desfrutavam se verifica uma constante de contestação violenta dos desempenhos respectivos.
Penso residir a causa profunda da alteração numa mudança das mentalidades e da inflação na auto-estima. Enquanto que outrora se tinha sempre presente a inevitabilidade do fim, correspondendo a actividade do que tratava à de um anjo derrogatório da iminência do termo, hoje o cidadão comum ufana-se de todo o direito a prorrogar o prazo da estadia neste local que já se deixou de querer de passagem. Com a consequência de aquele que assiste, por qualquer demora ou infelicidade, ser tido como um ladrão da vida que se quer pertença absoluta de um homem que largou a espera de Deus.
E nestes serviços de socorro, o médico ferido, provavelmente, terá sido o menos culpado do atraso.
Retrato de um Médico de Francis Picabia

8 comentários:

nocas verde disse...

Sei por experiência própria que quando a "desgraça nos bate à porta" são todos culpados.
Se a história tiver um final feliz agradecemos a todos esses anjos. Se não, culpamo-los a todos esses infernais seres. Verificar que fizeram (terão?) o seu melhor e que não havia outra solução virá (quando e se vier) mais tarde.
O médico que contactou comigo quando ela bateu à minha própria foi de uma humanidade sem fim. Agradeço-lhe todos os dias no silêncio do meu coração porque na altura não o fiz

O Réprobo disse...

Querida Nocas Verde,
já se sabe que em situações extremas em que se vê Pessoas Queridas à beira da fatalidade, é muito difícil ser-se justo, imediatamente. É humano, claro.
Mas julgo que não terei fantasiado quando detectei nos ambientes de outrora, na Província, sobretudo, uma reverência pela profissão, em que vi alguma co-relação com a relativa resignação que moldava a perspectiva do abandono deste mundo. É essa alteração de mentalidades a culpada da violência progressiva das reacções?
Beijinho

nocas verde disse...

Tem toda a razão, Réprobo. Tem toda a razão.
E também os professores... eram vistos, tratados e retratados com muito respeito. Não sou da província. Mas lá no meu "bairro" o próprio farmacêutico era tomado em conta, pedia-se-lhe opiniões que eram sempre cuidadosamente dadas e inteiramente respeitadas. A Senhora Professora intervinha, a senhora enfermeira do Centro de Saúde impunha tratamentos. Lembro-me de os considerar a todos seres inteligentíssimos, importantes.
Mas eu também sou do tempo (hihi) das senhoras que vendiam limões de porta em porta e do vendedor que trazia "sedas de Paris" e indicava os melhores perfumes "Este fica-lhe melhor, D. Dulce. Leve este para sua filha, D. Paula". Outras vidas.

O Réprobo disse...

Querida Nocas Verde,
outros tempos, com efeito. Mas não nos pensemos imunes a essas influências. Só que hoje, em vez de termos à porta os anunciadores dos limões e dos perfumes, têmo-los num quadrado da sala, seja em forma de Cristiano Ronaldo ou de Paula Neves, a dizer-nos que banco ou guloseima nos assenta melhor...
Beijinho (e, a propósito, eu ainda sou desse e de tempo anterior...)

Anónimo disse...

¿"Españolización" de Portugal?

O Réprobo disse...

Pela dureza das reacções, Caro Filomeno?
Mas não o creio. Penso que corresponde mais a uma hipervalorização do "eu" que alastra por todo o Ocidente.
Abraço

ana v. disse...

Este tema impressiona-me em particular, Paulo. A minha mãe era médica (uma urbana que foi parar à província, pelo casamento) e transformou-se numa espécie de João Semana de saias, já que tratou durante longos anos uma população pobre e ignorante, quase sempre sem cobrar um tostão. Era adorada por todos, claro, mas também tinha uma relação muito próxima com os pacientes. Respeitava-os e preocupava-se com eles, mesmo quando não estavam doentes. Habituei-me a ter por medida essa relação de proximidade médico-doente, e por isso me faz muita confusão estes casos extremos.
Um beijo

O Réprobo disse...

Querida Ana,
era precisamente a figura tradicional da Generosidade encarnada no médico itenerante de meios pequenos que eu tinha em mente. Sabia que a Ana é Filha de Médicos, mas pensava-Os sempre exercendo na Urbe.
Por isso, por uma confusão próxima da que sente, embora sem ligação de parentesco e profissão que nos refere, penso que esta nova onda é asquerosa empáfia dos que só pensam nos seus direitos, com todo o desconto que se deve dar à contemplação do sofrimento dos entes queridos de cada um.
Bjinho