domingo, 6 de abril de 2008

H2O e Cloreto de Sódio

O Sabor das Lágrimas de MagritteLeitura consonante com o espírito, de «História das Lágrimas», de Anne Vincent-Buffault. Interessante ver como se conseguiu atrofiar a exteriorização da dor: até aos Séculos XVII-XVVIII os homens choravam em público, tão natural e frequentemente como as Mulheres. Com o advento da sociedade burguesa, confinou-se o pranto ao Género Feminino, insuflando o mito de que um homem não chora, apesar da "reacção Romântica", falhada porque caída no excesso oposto. A Autora mostra como um escritor que não conheço directamente, Senancour, distinguiu a emotividade patente da sensibilidade, reduzindo esta à abertura e capacidade de experimentar sensações, acarretando, como consequência perversa, a exclusão da assunção pública da dor desse conceito.
Poder-se-ia pensar que numa época de uniformização das condutas dos dois Sexos a proscrição do pranto teria os dias contados, mas foi o contrário que sucedeu, a extensão do proibicionismo lacrimal a Elas, fornecendo mais uma acha para a fogueira dos que censuram ao Tempo querer transformar as Mulheres em homens.
Quero crer que muita da responsabilidade pela marginalização do choro se enraizará na importação de hábitos Norte-Americanos, nomeadamente o tendencial banimento do luto e de tudo o que possa lembrar o acto de carpir, para não embaraçar as relações sociais dos enlutados malgré eux, como Ariès e Mittford nos fizeram conhecer.
Mas, nos últimos anos, também me parece em mudança esta linha de força do comportamento social, com um revivalismo das emoções extravasantes, expresso nos programas de entretenimento de reencontro de familiares ou amigos afastados, de exploração das narrativas comoventes, ou de um medíocre jornalismo de sensações, o qual, acontecida qualquer tragédia, só tem microfones para perguntar como se sentem os atingidos, melhor ainda os que lhes querem. É como se houvesse uma reabilitação das lágrimas, mas desde que televisionadas, ao jeito do critério de qualidade do antigo Melodrama, embora desprovido da criatividade que, por vezes, aquele atingia. Em tempos de crise moral a Compaixão pelo sofrimento dos que nos estão próximos é substituída pela contemplação apiedada do dos estranhos imbuídos da celebridade de três minutos. Porque permite descarregar o excesso de generosidade refreada e não incomoda em demasia.
S. Pedro Chorando Perante a Virgem de Guercino

14 comentários:

ana v. disse...

Subscrevo a reflexão tão oportuna, Paulo. É uma excelente forma de integrar e superar um desgosto.

É verdade que hoje em dia se caíu num excesso de exteriorização de emoções, um convite ao voyeurismo que domina as sociedades ocidentais e que é explorado, até ao limite, pelas televisões. Mas, apesar de tudo isso, acho que o excesso é mais saudável do que o espartilho imposto pelo séc. IXX, que nos deixou marcas indeléveis na expressão dos sentimentos e nos fez, até, ter vergonha deles. Os males dessa imposição moralista e puritana foram muitos e levaram, como sabe, a uma enorme hipocrisia nos costumes.
Mas gostei, sobretudo, da sua expressão "reabilitação das lágrimas", altamente poética.
Um beijinho

cristina ribeiro disse...

Reabiitemo-as então, sem peias, desde que sentidas, porque o oposto em que se tem caído- das ditas lágrimas de crocodilo, pornograficamente exploradas pelas televisões, como bem diz, em nome de interesses muito pouco nobres- constitui um panorama deprimente...
Beijo

O Réprobo disse...

Claro que a masmorra dos sentimentos era atroz, Querida Ana. O problema maior que vejo nesta nova moda do exibicionismo de sentimentos filmado está em não me parecer funcionar como chave que abra o calabouço, mas como escape que legitima a imposição dele nas circunstâncias em que soltar-se seria mais natural, na perda de Entes Queridos (sem ironia waughiana) e com os que conhecem e estimam os que sofrem.
A Poesia está no Afecto da Leitora.
Beijo

O Réprobo disse...

Querida Cristina,
é isso que me arrepela a paciência. Explorar o que devia ser sagrado e genuinamente partilhado, como escapismo do peso da dor mais expectável e autêntica, para ganhar audiências, faz-me vir às do cabo.
Beijo

fugidia disse...

Há "coincidências"...
Apesar de ter muito auto-controle em termos sociais, sempre fui muito emotiva, de choro fácil, perante o sofrimento dos outros (mas também do meu) e nunca senti qualquer vergonha por isso.

Vem-me sucedendo, contudo, o que via na minha avó materna: o sofrimento às vezes dói tanto que não há lágrimas.
É uma experiência física desgastante: senti-las e não conseguir que saiam; apenas se sentem os olhos molhados.

Ao lê-lo e ao ler a expressão tão bem sublinada pela AV, percebi que tenho saudades de chorar.

Um beijinho, caro Réprobo.

O Réprobo disse...

Querida Fugidia,
conheço bem essa incapacidade de explodir no paroxismo da Dor, que experimentei logo após a morte do meu Pai e, em medida necessariamente diferente, com o desaparecimento do gatinho. Ontem o dia do horror decorreu sem a crise. Hoje já não aconteceu assim.
Identificou o título com o verso de António Gedeão, do poema «Lágrima de Preta»?
Beijinho

fugidia disse...

Sim :-)
Mas lembrei-me daquele outro que termina "as lágrimas são as minhas mas o choro não é meu" e pensei que o choro é mesmo meu, não há é lágrimas...

fugidia disse...

Sabe, em relação ao Rómulo de Carvalho sempre me impressionou muito mais o Homem (apesar de só o ter podido conhecer em criança e jovem - era amigo do meu pai) do que a Obra que nos deixou - e a Obra é excelente, como sabe.
Há pessoas assim, que valem por si próprias e não pela herança escrita que nos deixaram.

Anónimo disse...

Saíndo do seu tema de hoje (ou talvez não) o Paulo teve conhecimento do Homem que morreu ontem? Nós que o apreciamos, vertamos lágrimas de saudade, mais do que pelo profissional, ainda que também, sobretudo pelo ser humano de elevada formação moral que ele foi e de que fui testemunha presencial.

Maria

O Réprobo disse...

Querida fugidia,
o meu contacto com Ele limitou-se a uma pequena conversa formal, numa sessão de autógrafos. Mas já disse no Esconderijo que conheci vários Alunos de Rómulo de Carvalho e são unânimes em falar com veneração do Professor que os marcou.

O Réprobo disse...

Querida Maria,
já vi a nota do óbito do Grande Charlton Heston, mas no estado mental em que estou não consigo dazer um post decente sobre o assunto. Pelas razõe que conhece, sinto que estou diante de mais um bocadinho de mim que se descola.
E pela outra, que também terá presente, penso na Maria, neste momento.
Beijinho

Anónimo disse...

Sim, Paulo, claro que compreendo perfeitamente e acho muito bem que o não faça agora. Muitas outras ocasiões haverá, se assim o Paulo entender. Concerteza que sim.

Maria

Anónimo disse...

Oh! querido Amigo
Escreveu mesmo com bastante propriedade.

Passarei aqui sempre e estou também la no SR.
Um beijinho,

O Réprobo disse...

Querida Meg,
muito obrrigado pela aprovação e pela solidariedade. Passo sempre no Sub Rosa, no estado em que me acho é que não consegui comentar, ontem.
Beijinho